HISTÓRICO DO PROJETO
Há trinta anos, em 1968, em relatório solicitado pela Comissão de Lingüística
Iberoamericana do PILEI, o professor Nélson Rossi (UFBA) ressaltava
o interesse de se estender ao Brasil a execução do Proyecto de Estudio
Coordinado de la Norma Lingüística Culta de las Principales Cidades
de Iberoamérica y de la Península Ibérica - de que participavam
países de língua espanhola, mais especificamente, as cidades de Bogotá,
Buenos Aires, Caracas, Havana, Lima, Madrid, México, Puerto Rico e Santiago
do Chile - em virtude de serem "tão evidentes e tão relevantes os pontos
comuns à problemática do espanhol nas Américas e do português no Brasil".
Propunha então que fossem estudadas as normas cultas de cinco capitais
brasileiras Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre,
que proporcionariam uma amostra relativa a uma população urbana (aproximadamente
um sétimo dos habitantes do país) concentrada "em quatro cidades fundadas
no século XVI e uma - Porto Alegre - no século XVIII, distribuídas harmoniosamente
por nossa extensão territorial mais densamente povoada".
O Projeto NURC, como passou a ser chamado, no Brasil, teve, desde o
seu início, em 1970, o objetivo de caracterizar a modalidade culta da
língua falada nesses centros urbanos, adotando-se, para isso, critérios
rigorosos que assegurassem o controle de variáveis e permitissem o confronto
de dados, critérios esses já estabelecidas para o espanhol. Este Projeto
visa ao estudo da fala culta, média, habitual, através de uma documentação
sonora capaz de fornecer dados precisos sobre a nossa língua, respeitadas
as diferenças culturais de cada região. Procurou-se, desde o início,
deixar claro que não se tratava de estudar uma norma imposta segundo
critérios externos de correção e de valoração subjetiva, mas sim de
estudar uma pluralidade de normas objetivamente comprovadas no uso oral
- entendendo-se norma no sentido coseriano, o que se disse e tradicionalmente
se diz na comunidade considerada, admitindo variações externas, sociais
ou regionais, e internas, combinatórias e distribucionais.
Ao longo de seu percurso, o NURC-RJ dividiu-se em 3 subprojetos: Fonética/Fonologia,
Morfossintaxe e Léxico. O subprojeto de Fonética e Fonologia teve por
objetivo apresentar uma visão geral dos principais processos fonético-fonológicos
no português falado. Seguiu uma linha teórico-metodológica apoiada em
princípios da sociolingüística quantitativa laboviana e da fonética
experimental, fazendo uso de programas computacionais de variação lingüística
(VARBRUL) e de análise acústica (ILS, CLS e CECIL, existentes no Laboratório
de Fonética da Faculdade de Letras da UFRJ).
Os temas abordados, até agora, foram: análise articulatória e acústica
do vocalismo átono e tônico, o processo de harmonia vocálica; a análise
das consoantes que travam sílaba (s, r, l); a nasalização, a ditongação
e a palatalização.
No sub-projeto de morfossintaxe, adotaram-se, basicamente, duas linhas
teóricas, que atuam complementarmente -- a teoria da variação e o funcionalismo
que procura dar uma visão dos fenômenos enfocados de um ponto de vista
gramatical e discursivo. Vários artigos, teses e dissertações nessa
área foram publicados, com base nesse material: o sistema de tempos
verbais; processos de modalização discursiva; particípios duplos; a
função dos advérbios em -mente; concordância verbal; o sistema de pronomes
pessoais; o uso do artigo diante de nomes próprios e de possessivos;
alternância nós/a gente; processos de indeterminação do sujeito; processos
de intensificação; fechamento de turnos: tipos e funções; topicalização:
sintaxe e prosódia;; anteposição e posposição de adjetivos no sintagma
nominal; ordem. Todas essas descrições preconizam uma norma de uso mais
flexível e variável que obedece a condicionamentos internos e externos
à língua.
No subprojeto do léxico, decidiu-se que somente substantivos, adjetivos
e verbos seriam indexados, deixando-se para uma fase posterior o levantamento
dos vocábulos gramaticais. Foram realizadas, para cada inquérito e para
o corpus total da pesquisa, duas listas principais: uma lista
de unidades léxico-textuais, onde cada forma vocabular materialmente
distinta figura acompanhada das indicações de suas ocorrências, e uma
lista de lexemas, onde cada unidade vem acompanhada de sua freqüência
absoluta. Já se encontra concluída a quantificação do "Vocabulário da
Fala Culta Carioca no Projeto NURC", com um total de 500.000 unidades
vocabulares, a partir de 152 entrevistas tipo DID, em 19 áreas temáticas.
Esse vocabulário foi processado a partir de meios computacionais, permitindo
a obtenção de dados de freqüência, a identificação dos itens léxicos
e gramaticais mais usados na língua, e a delimitação do vocabulário
específico de cada tema. Também o conjunto de transcrições que serviu
de base para esse levantamento se encontra totalmente editado e publicado
(19 volumes).
O corpus levantado no país perfaz hoje um total de mais de 1500
horas de registros magnetofônicos - se consideramos todas as cidades
- realizados na década de 70, mais precisamente concentrados entre os
anos de 1972 a 1978. Esse material representa o desempenho lingüístico
de falantes de ambos os sexos, nascidos nesta cidade, com escolaridade
universitária, distribuídos em três faixas etárias - de 25 a 35 anos,
de 36 a 55 e 56 anos em diante - gravados em três situações distintas:
1) aulas e conferências (Elocução formal/EF); 2) diálogos informais
(Diálogo entre dois locutores/D2); 3) entrevistas (Diálogo entre locutor
e documentador/DID). O Arquivo Sonoro da fala do Rio de Janeiro abrange
um total de 394 entrevistas com 493 informantes, sendo 238 (60,4%) do
tipo Diálogo entre informante e documentador (DID), 99 (29,1%) do tipo
Diálogo entre dois informantes (D2) e 57 (14,4% ) de Elocuções formais
(EF).
A divulgação do material transcrito deu-se também através da publicação
de três volumes de transcrições de parte do acervo (corpus compartilhado):
A linguagem falada culta na cidade do Rio de Janeiro: materiais para
seu estudo (1992, 1993 e 1994). Organizado com o intuito de permitir
que um número maior de professores e pesquisadores tivessem acesso a
essa fonte valiosíssima para o estudo do português falado seu interesse
üístico.
A década de 90
O final da década de 80 e começo da década de 90 marcam o início da
implementação do Projeto Gramática do Português falado, que tem por
objetivo a preparação de uma gramática referencial da variante culta
do português falado no Brasil, com base no corpus do projeto
NURC, nas cinco capitais, procurando congregar esforços de pesquisadores
que já se vinham dedicando ao estudo da língua falada, e de outros estudiosos
voltados mais para questões lingüísticas teóricas e que tomavam pela
primeira vez contato com um corpus natural de linguagem oral.
Complementarmente, com o intuito de analisar a mudança lingüística,
tornou-se necessário estabelecer um confronto com as gravações dos anos
70, que documenta com o maior rigor uma década de grande interesse dentro
do momento político-histórico brasileiro. Iniciou-se, assim, em 1992,
no Rio, uma ampliação do corpus, com a inclusão de 08 entrevistas
do tipo DID - recontato de quatro homens e quatro mulheres - que, na
década de 70, pertenciam à primeira e segunda faixas etárias e passam
a representar a segunda e terceira faixas etárias, na década de 90,
respectivamente, e mais 04 novos locutores, pertencentes à primeira
faixa etária, 12 informantes, no cômputo geral, portanto. A partir de
1995, foram realizadas outras três outras entrevistas de recontato,
pertencentes à terceira faixa etária, na década de 70, e que correspondem
hoje, na década de 90, a uma quarta faixa etária (informantes acima
de 74 anos). Esse corpus foi transcrito grafematicamente e digitado
dentro das mesmas normas do restante do corpus, visando a uma
publicação. Em 1996, constituiu-se uma nova amostra (informantes não
entrevistados anteriormente), distribuída, igualmente, por três faixas
etárias. Intenta-se, assim, discutir os resultados estatísticos da análise
em tempo aparente - a partir do comportamento dos locutores por faixas
etárias - com o resultado das análises em tempo real. Em Salvador, já
se deu início também ao levantamento de novos corpora.
A análise da mudança na perspectiva laboviana (Labov,
1994) parte do pressuposto de que é possível captar mudanças através
da análise distribucional-quantitativa de variáveis em diferentes faixas
etárias, mas também que essa mesma distribuição pode não representar
mudanças na comunidade, mas sim constituir um padrão característico
de gradação etária que se repete a cada geração. A resposta a esses
problemas de interpretação dos dados deveria, então, basear-se nos resultados
obtidos em tempo real, no estudo e confronto de dois ou mais períodos
discretos de tempo, através da observação dos mesmos indivíduos (panel
study) e/ou de indivíduos diferentes (trend study). A combinação da
análise, portanto, de todos os corpora constituiria, assim, o
método fundamental de interpretação da mudança em curso.