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PROJETO NURC-RJ

DIÁLOGOS ENTRE INFORMANTE E DOCUMENTADOR (DID):

Tema: "Alimentação"
Inquérito 0075
Locutor 0088 - Sexo masculino, 57 anos de idade, pais cariocas, dentista. Zona residencial: Suburbana
Data do registro: 11 de julho de 1972
Duração: 52 minutos


Som Clique aqui e ouça a narração do texto


LOC. -  (inint.) quente, essa coisa e tal, um biscoitinho, a coisa não está tão ruim assim.
DOC. -  Por exemplo, esse lanche que o senhor fez agora, o senhor costuma fazer sempre?
LOC. -  Nós fazemos esse lanche aqui duas vezes por dia, às nove e meia e às quatro e meia. Porque (sup.)
DOC. -  (sup.) E no verão também (sup.)
LOC. -  (sup.) No verão também. O café é como um parati, né, como a cachaça. Ele, eh, no inverno ele aquece e no verão ele esfria e está tudo bem. O café vai sempre, em qualquer tempo. Mas esse café tem duas, tem duas finalidades, primeiro, quebrar a rotina, porque pegar uma, uma enfiada de três, quatro horas de trabalho seguido cansa. Então o café é uma pausa nesse trabalho e alimenta, né? Mais alguma coisa sobre o café?
DOC. -  O senhor trabalha aqui o dia inteiro?
LOC. -  De manhã e à tarde.
DOC. -  E como é, como é a, as suas refeições? Quantas refeições o senhor faz por dia?
LOC. -  Bom, hoje as minhas refeições estão muito irregulares, porque se eu vou à cidade, eu não tenho mais paciência pra sentar em restaurante, esperar e ... Não dá, não dá.
DOC. -  O senhor costuma ir à cidade?
LOC. -  Eu vou à cidade por causa do protético e por causa de compras, porque o material especializado pra odontologia há poucas casas, de modo que o normal é fazer as compras na cidade.
DOC. -  Então como é que o senhor resolve o problema das refeições?
LOC. -  Um lanche ligeiro. Não sei se a senhora percebeu que eu estou ficando velho. E os velhos não têm assim muita necessidade de, de comida. Eu sinto mais falta de sono que de alimento. Eu sou capaz de passar um dia inteiro na base de dois ou três cafezinhos sem sentir grande falta de alimento. Agora eu não posso perder uma noite de sono, fazer um velório, já não, não dá mais. No dia seguinte eu estou com, com fígado ruim, estou me sentindo indisposto. Embora quando eu dirija à noite pra fazenda, às vezes chego lá à meia-noite, uma hora, eu prefiro viajar à noite, problema de farol, eu acho que é mais fácil viajar à noite que durante o dia, porque o farol de, o farol de longo alcance avisa quem vem em sentido contrário da ida do meu carro, como eu vejo o outro, de modo que gosto mais. Há o problema do calor, não é? A noite sempre é mais fresca. Mesmo no verão é muito mais fresco viajar à noite. Eu só não gosto de viajar à noite com chuva. De modo que a senhora está querendo falar sobre alimentação e eu estou aqui desviando o assunto.
DOC. -  Não, mas não tem importância. Mas normalmente o senhor almoça em casa, né?
LOC. -  Normalmente eu almoço em casa, minhas refeições são em casa porque eu moro aqui perto.
DOC. -  Hum.
LOC. -  E, e eu gosto de comida doméstica, comida de restaurante é assim comida esporádica, né, em viagem, em passeio, mas, todo dia ... Eu não sei se a senhora já observou, a senhora é muito jovem, que as pessoas normalmente se alimentam basicamente do que se alimentavam em criança. Eu fui habituado com feijão, arroz e carne. É o meu tripé de alimentação. Há as variações, né? Feijão e arroz eu, eu acho que aqui o, o carioca, o mineiro, o fluminense, na sua terra se usa muito? Não enjoa. E a carne nós fazemos umas variações: carne-de-vaca, carne de, de galinha, carne de porco, peixe. Aliás, de mar eu só gosto de peixe e camarão. Mar, mariscos e polvos, essa coisa não vai mesmo.
DOC. -  Há algum peixe que o senhor goste mais? Algum tipo.
LOC. -  De preferência? Eu gosto de peixe de carne clara e dura, carne branca. Eu gosto por exemplo dum peixe de pobre, tainha.
DOC. -  Hum.
LOC. -  Namorado, vermelho, eu gosto de peixe bom também, badejo (sup.)
DOC. -  (sup.) E pra tainha e assim, eh, a maneira de preparar, como o senhor prefere?
LOC. -  Depende. Eu gosto de peixe frito, gosto de filé de peixe, gosto de peixe cozido. Gosto até do, do, da moqueca de peixe dos baianos, né? De comida baiana eu, pra comida baiana, eu faço umas restrições.
DOC. -  É?
LOC. -  A comida muito carregada, acarajé, essa coisa eu já ...
DOC. -  O senhor conhece toda, todos os pratos, o senhor já provou alguns (sup.)
LOC. -  (sup.) Não. Provei alguns. Vatapá não gosto.
DOC. -  O senhor já provou?
LOC. -  Já. Vatapá minha mulher adora mas eu não gosto de vatapá. Eu gosto de moqueca de peixe, moqueca de galinha e o famoso xinxim de galinha. Conhece?
DOC. -  Não, como é o xinxim?
LOC. -  Ih, xinxim de galinha é uma espécie de galinha a molho pardo, também carregada no dendê, né? Mas é uma delícia. Agora moqueca de peixe é uma maravilha.
DOC. -  Moqueca como é feita? O senhor sabe?
LOC. -  A moqueca é um peixe cozido e sempre com o, o azeite-de-dendê. O azeite-de-dendê é o condimento básico da comida baiana, né? Porque a pimenta é regulada de acordo com o, o gosto do freguês. E há a clássica pergunta: quente ou fria, né? Conhece? Quente, eh, carregam na pimenta e eu não sou muito fã de pimenta não.
DOC. -  E o senhor gosta de comida condimentada?
LOC. -  Eu gosto de sentir o gosto do tempero, não gosto do tempero. Por exemplo ontem eu comi almôndega e o molho era de, tinha pimentão. Eu adoro o gosto do pimentão, mas não gosto de comer o pimentão, eu não gosto de encontrar tempero na comida.
DOC. -  Hum. Hum.
LOC. -  E o cheiro do molho do cachorro-quente é um, pra mim é uma parada, né, mas não vai. Aquele molho tem, eh, cebola, aquela, não, tomate, nada daquilo.
DOC. -  E aí o senhor compra cachorro-quente sem molho?
LOC. -  Sem molho. Nessa altura eu prefiro então cachorro-quente com mostarda. Mas o cheiro eu acho uma maravilha. Porque em matéria de comida o cheiro influi muito. Eu não suporto nem o cheiro do chá preto. E não é que eu não tenha tomado chá em criança não, porque na minha casa havia chá, o famoso chá Lipton, era um chá importado, papai gostava de chá, papai tomava chá com torradas normalmente todo dia, como pitéu, e eu tomava quando estava doente, quando havia problema de intestino, então vinha o chá preto com torrada e aquilo era sacrifício, eu tinha que ser subornado pra tomar chá preto porque eu não gostava mesmo, então papai ficava naquela agonia de ter um filho doente e ele ficava transtornado, ele roía a unha, papai ficava era na, era um desespero mesmo, porque ele extravasava mais o, a angústia dele. Eu me controlo mais, embora seja a mesma coisa quando eu tenho um filho doente eu, pra mim o desespero é uma coisa, eh, eu gosto muito de ver meus filhos com saúde, rindo e brincando. Então papai não, tinha que oferecer, naquele tempo dez tostões era um dinheiro muito sério, e lá vinha com ela: você toma o chá, papai dá dez tostões pra você. Às vezes eu ainda fazia assim e tal, ainda o negócio ia a dois mil réis e tal, de modo que muitas vezes eu ficava bom com um bom pecúlio de lado, né? Dava pra comprar brinquedo. Mas não suporto nem o cheiro do chá preto. Gosto de café e mate. Mas há uma porção de variações de comida. Eu sou biquento (sic) pra comida, como se diz, mas eu, dentro do que eu gosto, há uma porção de coisas, né, bacalhau, adoro bacalhau, bacalhau de qualquer forma.
DOC. -  Bacalhau como? Porque há várias maneiras de fazer (sup.)
LOC. -  (sup.) Ah, eu, bacalhau eu como até cozido com água e sal com batata também cozida e aquele molho de azeite e vinagre. Só não gosto de bacalhau com quiabo. Não vai aquilo.
DOC. -  Bacalhau com quiabo (sup.)
LOC. -  (sup.) Com quiabo. Há quem faça e eu (sup.)
DOC. -  (sup.) Eu nunca vi (sup.)
LOC. -  (sup.) Eu não gosto de legumes.
DOC. -  Ah, o senhor não gosta de legumes?
LOC. -  E verdura, então, legume um ou outro, abóbora, uma coisa assim, mas normalmente eu não como não, vagens, essa coisa (inint.)
DOC. -  E salada? O senhor não gosta de salada?
LOC. -  Salada não. Nem, nem, nem salada de agrião, nem salada de alface, nada disso.
DOC. -  De manhã, o senhor, eh, como é a sua refeição de manhã?
LOC. -  De manhã é café com leite e o acompanhamento varia, né? Pão com manteiga é habitual, queijo, biscoito, uma bolacha, isso varia com o apetite, né? Isso é o normal. Não tenho apetite pra, pra comida dos americanos por exemplo, né, que acordam e comem bife e ovos e 'bacon', aí não, não dá condição. E eu tenho esquisitices também pra comer, não gosto de misturar por exemplo refresco, que é uma coisa doce, com a comida salgada. Eu não gosto de bebida, não bebo, mas será preferível acompanhar com uma coisa mais amarga, né, cerveja ou chope, mas normalmente não, não bebo. Ah, o acompanhamento da minha refeição é água só.
DOC. -  Mas nem de vinho o senhor não gosta?
LOC. -  Eu gosto mas eu tenho medo. Eu respeito muito bebida, sabe?
DOC. -  Eu acho vinho delicioso.
LOC. -  É. A sua terra tem uns vinhos muito bons e aqui em São Paulo tem uns, tem uns vinhos também maravilhosos. Conhece os vinhos de São Roque?
DOC. -  Não.
LOC. -  Isso é propaganda gratuita, conhece? É uma coisa maravilhosa. Aqui no Encantado há uma cantina, cantina Primavera, a senhora tem vinhos maravilhosos, cousas que a senhora não tem vontade de parar. E eu como não estou habituado a beber, dois copos de vinho me derrubam fácil, mas fácil mesmo. Olha, eu respeito muito bebida, tenho medo. Minha mulher andou um tempo servindo vinho aos domingos assim e o mais velho gosta. Eu então, à socapa, eu disse a ela: olha, vamos acabar com esse vinho assim porque habitua e não convém mesmo, sabe, não convém. Eu tenho pavor de, de embriaguez. De modo que esse negócio de, de uísque, essa mania nova de, né, antigamente em qualquer casa de família brasileira, chegava visita havia um cafezinho, hoje um cidadão serve uísque, e eu não gosto de uísque, eu acho que entre o uísque e a cachaça eu prefiro a cachaça, a cachaça é mais gostosa e, não é nacionalismo não, acho a cachaça mais gostosa.
DOC. -  E batida o senhor não gosta?
LOC. -  Já provei batida de limão, batida de quê, de coco, e essas coisas que andam por aí, leite-de-onça e há um outro negócio ...
DOC. -  Leite-de-onça o que é?
LOC. -  O leite-de-onça leva, leva leite condensado. É gostoso, é doce. Eu gosto de ponche, gosto de licores e há licores fabulosos, né? O Cointreau, por exemplo, é uma maravilha o Cointreau. Mas sempre fazendo restrição, porque eu tenho medo de bebida. Eu vejo, já vi uns casos de embriaguez, assim, gente conhecida, gente chegada. É uma coisa que causa repugnância mesmo. E eu não tenho até paciência pra lidar com bêbado. Eu jamais seria psiquiatra, eu não teria paciência pra lidar com louco. Eu não teria, vamos dizer, não é paciência, eu não teria jeito pra lidar com louco. Como eu não tenho na... com o, o pau-dágua não, eu não tenho paciência pra lidar com o pau-dágua, eu não respeito o pau-dágua. Eu acho que ele se deixou vencer pelo vício e o ... Quem tem vício deve aturar ele sozinho. Eu não tenho paciência pra aturar, por exemplo, cachimbo e charuto num ônibus, não agüento. Eu reclamo e esbravejo mesmo. Volta e meia eu estou criando caso. O cigarro já eu acho desagradável, porque eu não fumo, mas o cigarro, num ambiente em que haja ventilação não tem problema a pessoa fuma, não, não incomoda o cheiro do, o do, do, da fumaça do cigarro não incomoda tanto quanto o, a guimba que é o termo de gíria da ponta do cigarro apagada, né? Às vezes deixam aí no meu cinzeiro, é aquele cheiro desagradável da, do cigarro apagado, né? A fumaça não perturba tanto. Mas cachimbo e charuto eu não suporto. Então eu reclamo, porque eu acho que quem tem vício deve, né, praticar seu vício sozinho. Ele não vai compelir os outros ou um estranho a aturar seu, seu vício. Maracanã em jogo de futebol é, é um azar. Eu estou sentadinho quietinho e daqui a pouco eu estou sentindo o cheirinho. Tem sempre um na minha frente com um charuto ou com, ou com cachimbo. Aí eu mudo de lugar, né? Porque há o provérbio, aquele clássico: os incomodados que se mudem.
DOC. -  O cachimbo tem um cheirinho gostoso, né? Em geral.
LOC. -  Dizem os que fumam cachimbo que há fumos cheirosos, fumos ingleses, essa coisa, eu não ...
DOC. -  Agora, outra coisa, eh, o senhor não falou no, na sua refeição, eh, à noite quando o senhor chega em casa.
LOC. -  Bom, à noite, varia muito. Se eu estou de bom humor, se eu estou sem tensão alguma e a comida agrada, eu posso me alimentar bem, como ontem. Outras vezes eu chego assim amolado, cansado (sup.)
DOC. -  (sup.) Ontem foi, foi quando o senhor comeu almôndega?
LOC. -  Almôndega. Chego amolado, então eu faço uma refeição mais ligeira, quase sempre carne e pão. Se não tiver carne e pão, eu procuro fazer outra alimentação mais sólida, porque carne e pão é praticamente um alimento completo, não é? Agora, já que a senhora está tão interessada em alimentação, na minha alimentação há detalhes curiosos: eu adoro carne-seca, mas tem que ser carne seca sem gordura. Eu não suporto gordura na minha boca. Se me enrolar um bocadinho de gordura na minha boca, eu não consigo engolir. De modo que um pitéu, que eu, eu não sei se a senhora conhece, a minha mãe fazia com farinha de mesa. Ela fazia um pirão de farinha de mesa e picava a carne-seca em quadradinhos pequeninos. Essa carne-seca era frita e depois colocada sobre o pirão de farinha, com aquele molho assim dourado, aquele caldo da, aquela gordura da, da, que, que soltava da, da carne-seca frita. E era uma delícia. A minha mulher faz uma variação com fubá. Faz um angu de fubá de milho, ainda ontem no almoço tinha, mas teve que haver uma, né, uma, uma separação da carne-seca magra da carne-seca gorda. E tirou um pouco o prazer da história, sabe? São pequeninos detalhes de, de comida, né? Há pessoas que comem tudo que vem à mão e tal, é verdura, é legume, beringela, eh, não vai. Há comidas que eu nunca provei. Eu nunca comi jiló na minha vida, mas eu acho que eu não vou gostar de jiló. Então não como jiló. Jiló, maxixe, quiabo, nada disso, mas não há condição mesmo. E engraçado, eu gosto de plantar, gosto de ver, gosto da, de ver a cenoura, o nabo, já fiz tremendas plantações de, de, de horta e tenho prazer em ver essa história. Agora, comer não, é diferente.
DOC. -  Pelo que o senhor falou, eh, a gente deduz que o senhor costuma comer bastante carne, né? Agora existem várias maneiras de preparar a carne. O senhor, existe alguma especial? Também tipos de carne, né?
LOC. -  Tipos de carne.
DOC. -  Existem vários tipos pra determinados pratos.
LOC. -  É o que eu disse à senhora no começo da nossa conversa. Eu fui criado num ambiente pobre. Pobre o modo de dizer, porque na minha casa se comia, se comprava todo dia um quilo e meio de alcatra. E quem comprava era eu, de modo que eu me lembro muito bem da história. Hoje qual é a família, vamos dizer de classe média, que pode se dar ao luxo de todo dia botar um quilo e meio de alcatra dentro de casa? São mais de dez cruzeiros, só de carne. Naquele tempo, a alcatra custava um, um cruzeiro e oitenta, mil e oitocentos réis. Um cruzeiro e oitenta do antigo, do velho. Mil e oitocentos réis. Aos, aos domingos comprava-se lá em casa então um peso maior de lagarto, fazia-se a carne assada. Aquela, aquele assado branco, gostoso, recheado, mamãe enfiava, eh, lingüiça e ovos cozidos, e aquilo era uma maravilha, né? Porque não se matava car... gado aos domingos. Não havia geladeiras e o gado era abatido e vendido a carne fresca. Às segundas-feiras os açougues não abriam. Agora havia as variações, havia o peixe, na minha casa se respeitavam os dias de jejum e abstinência, coisa que hoje nem se fala mais. Então às sextas-feiras comumente havia peixe, bacalhau, gostava-se muito de galinha. Mas ...
DOC. -  Alguma maneira assim especial de preparar a galinha o senhor gosta?
LOC. -  A galinha lá em casa normalmente era molho pardo ou assada. A carne era carne assada, bife. Agora o próprio bife havia uma série enorme de variações, não é? Bife e batata frita. A batata frita em rodelas, à portuguesa, como se diz, com o bife por cima e o molho do bife encharcando a, a batata frita, conhece? Torradas também redondas e o bife por cima e o molho do bife por cima do bife encharcando a torrada, é uma delícia. Bife à milanesa, e pra quem gostasse, ensopadinhos, né? Ensopado de vagem, de repolho, legumes. E por falar em legumes, na minha casa quando se fazia arroz com legume, pra mim, pra papai, era arroz puro. Havia outro arroz. Então até hoje eu mantenho esse, esse tipo de comida assim muito puxada a carne. E gosto. Agora não gosto de comidas estrangeiras complicadas. Eu acho que (sup.)
DOC. -  (sup.) O senhor parece um gaúcho. O gaúcho é que gosta de carne.
LOC. -  De carne. Ah, eu me dou muito bem com churrasco.
DOC. -  O gaúcho é da carne, não sai (inint./sup.)
LOC. -  (sup.) Olha eu, eu há muitos anos que, que sonho com a ida ao Rio Grande do Sul na, nos tais festivais de uva, que eu adoro fruta. Mas há sempre uma coisa e outra e a gente vai ficando preso, né, porque é uma semana que eu tenho que sair daqui. Essa semana complica. Esse ano eu tive uma pro... um convite do meu filho mais velho pra ir a Assunção e ele pagava o passeio todo, mas eu não pude sair do Rio. E ele foi a, ele queria ver as cataratas do Iguaçu e dar uma esticada a Assunção, pelo menos é um país estrangeiro. Eu não pude sair daqui. Muito problema e fiquei mesmo. Ele foi até Santa Catarina e deu azar que na volta acertaram o carro dele. O carro estava fazendo um mês de uso, um Opala SS levou uma chapada de lado de um irresponsável que saiu de trás duma, duma, duma procissão de carros. E quem conhece a estrada, quando está impaciente, ele aponta e volta, né? Não, ele saiu direto. O carro estava no seguro, mas sabe como é, um carro novo, foi o lado todo, o pára-lama, o pára-lama dianteiro, as duas portas e o pára-lama traseiro, acertou tudo. Deformou o carro. Foi pro conserto, está quase novo, mas não é a mesma coisa. Mas, falando em alimentação.
DOC. -  O senhor disse que adora frutas (sup.)
LOC. -  (sup.) Adoro frutas. Não gosto de abacate e nunca comi e acho que não vou comer jenipapo, isso é implicância pessoal.
DOC. -  Mas o licor de jenipapo é delicioso. O senhor alguma vez provou licor de jenipapo? Maravilhoso.
LOC. -  Não, nunca provei.
DOC. -  É maravilhoso.
LOC. -  Não, mas o licor é uma coisa que independe do gosto da fruta. A senhora já provou licor de banana? O licor de banana só pode ser feito com a banana-dágua, que é a banana menos valorizada. É uma delícia. É uma coisa muito séria o tal do licor de banana. Mas eu sou fã de abacaxi, tarado por abacaxi. Eu como um abacaxi inteiro, tranqüilo, e não me faz mal. Melancia já, um pouco pesado, mas adoro melancia. Melancia gelada é pitéu mesmo. Agora macã, pêra, uva, pêssego.
DOC. -  Aí, pêssego é ótimo.
LOC. -  Morango, banana, qualquer banana, a favorita é a banana-ouro.
DOC. -  Banana-ouro?
LOC. -  Banana-ouro. Eu nesse sítio aqui de Santa Cruz, eu tive mais de quarenta variedades de frutas, contando banana como uma fruta, mas eu tinha umas seis ou oito variedades de frutas. Tinha oito variedades de laranja, então, contando laranja como uma das frutas, eu tinha mais de quarenta variedades. Inclusive essas frutinhas tolas aqui do Brasil: jamelão, amora, carambola, romã, e sapoti, abio, abio amarelo, abio roxo, cabeluda, oiti.
DOC. -  Cabeluda?
LOC. -  Cabeluda.
DOC. -  Como é essa fruta?
LOC. -  A cabeluda é uma frutinha ama... que madura ela fica amarelinha e ela é peludinha, mais peludinha que o pêssego. Daí o, o nome de cabeluda. Ela é ácida. Ácida mas tem um gosto peculiar, é muito gostosa. Jambo, conhece jambo? Jambo ver... o jambo vermelho é, é uma coisa muito séria, jambo é gostoso mesmo. O amarelo não, o amarelo é um pouco insípido. O caimito, que é o abio lá do Pará.
DOC. -  Como é o nome (sup.)
LOC. -  (sup.) Caimito.
DOC. -  Caimito?
LOC. -  Abio roxo. Acho um adocicado enjoativo, mas o abio amarelo, o abio amarelo é muito bom. Sapoti, eu preciso brigar com, com morcego e coruja, né?
DOC. -  É exato.
LOC. -  Mas quando se consegue, se consegue um sapoti bom. Sapoti é muito, muito, muito delicado. Mas aqui eu tinha uma variedade tremenda de, de laranjas.
DOC. -  Era muito grande o seu sítio?
LOC. -  Aqui eu tinha ... Pra sítio aqui na Guanabara era grande, era quase um alqueire. Cana, caju, fruta-de-conde, graviola, grumixama.
DOC. -  Como é?
LOC. -  Grumixama, guabiroba.
DOC. -  Como é?
LOC. -  A, a grumixama é como uma jabuticaba, só que dá na ponta do, do, dos galhos. A jabuticaba dá colada ao tronco, né? Agora, fala-se em jabuticaba, jabuticaba é, é fruta que, problema para mim é parar de comer. Eu vendi agora uma parte do sítio.
DOC. -  (inint.) ela é branca por dentro? Como é que é?
LOC. -  Branquinha por dentro, ela é preta por fora. Madura ela é pretinha e é quando ela é gostosa. Agora a jabuticaba tem que ser direta do produtor ao consumidor, quer dizer, direta da, da árvore pra boca, porque ela fermenta quase que imediatamente. Se romper a pele, a jabuticaba agüenta, intacta, ela agüenta horas, não adianta geladeira nem congelador, nada. Ela tem que ser consumida imediatamente. Agora madura, é uma das frutas mais gostosas que eu conheço, né? Manga.
DOC. -  Tinha manga também lá?
LOC. -  Umas trinta e tantas mangueiras só.
DOC. -  Era assim variedades diferentes?
LOC. -  Diferentes. Itamaracá, 'bourbon', manga espada, espadinha, carlota.
DOC. -  Itamaracá, 'bourbon', são tipos de mangas também?
LOC. -  São tipos de manga. Itamaracá é de Pernambuco, né? É uma manga amarela avermelhada, ela tinha aqui, tinha um coração-de-boi, ela ficava de um verde amarelado, tremenda manga (sup.)
DOC. -  (inint./sup.) manga grandona.
LOC. -  Sem fiapo. Porque a espada é fiapenta, né? Mas tem aquele gosto tão bom, tão diferente. Porque as mangas têm uma variação de gosto bem acentuada, né? É aquele padrão comum, mas o ... Aqui perto do meu sítio, da minha fazendinha, Sapucaia, nessa região do Estado do Rio, há uma manga famosa. Aliás eu digo que é a manga é de Sapucaia. Mas toda aquela região ali de Anta, Bemposta, Sapucaia, até Porto Novo, a manga espada e a espadinha são, são ... Basta dizer que nós compramos as caixas, não é? E, mas não compramos uma caixa não. Compramos várias porque temos de distribuir, a parentela toda já, já fica encomendando as mangas de Sapucaia. E eu estou plantando também. Itamaracá eu tenho na fazenda. É um gosto acentuado, é uma manga de gosto forte, mas muito boa.
DOC. -  O senhor vai constantemente pra sua fazenda?
LOC. -  Todo fim de semana.
DOC. -  E quem é que, a parte da comida quem é que se encarrega?
LOC. -  Bom, nós temos uma cozinheira esporádica, só pros fins de semana. E, senão minha mulher se incumbe da comida, né? Mas essa cozinheira (sup.)
DOC. -  (inint./sup.)
LOC. -  (sup.) Não, a minha mulher cozinha bem quitutes. Quer dizer, coisas fora do comum. A cozinha, o trivial, qualquer uma das minhas irmãs derrota a minha mulher longe, porque as minhas, na minha família todas as mulheres eram grandes cozinheiras, sabe? A minha mulher não foi preparada para ser dona de casa, ela foi preparada pra ser professora. De modo que faz com boa vontade. Quando é um prato especial, ela lê a, a receita, faz aquilo com atenção e a comida sai muito gostosa. Mas no trivial ela faz uma comida limpa, atraente, mas não tem aquela, aquele traquejo, né, digo aquela tarimba de quem faz, de quem faz todo dia. Eu me lembro que na casa de uma das minhas irmãs, a segunda, que é cozinheira emérita, num domingo havia cinco variedades de galinha na mesa. Ela tinha prazer em estudar assim uns pratos especiais com ... O meu, o meu cunhado gostava muito de galinha e então havia aquela, aquele cuidado de se preparar a galinha de muito modo diferente. Na minha casa há um certo padrão assim, três, quatro modos diferentes pra, de fazer a galinha. Inclusive o, o risoto de, de galinha, né? Mas eu prefiro o risoto de camarão. Mais alguma coisa sobre comida?
DOC. -  Sim. O senhor, o senhor não falou num prato aí que é muito comum pra, sim, o senhor falou sim, mas, em feijão, mas não feijão, a feijoada, é que a gente faz uma distinção, né (sup.)
LOC. -  (sup.) Ah, feijoada. A feijoada é o prato que vai entrar agora em pauta, né, entra, chega o inverno, pode-se comer feijoada e um outro prato que nós herdamos de Portugal que é o cozido.
DOC. -  Ah, eu ia lhe perguntar isso, se o senhor gostava (inint./sup.)
LOC. -  (sup.) Na minha casa existe até um, uma caçarola especial pro, pro cozido e pra feijoada. E eu gosto. Eu não gosto da tal feijoada completa, com rabinho de porco e orelha, essa cousa, porque nós não comemos mesmo. Mas eu acho que o que se põe na feijoada, lá em ca... dá pra um gosto satisfatório, sabe? E no final da história, se tirarmos todo esse, esse acompanhamento do feijão, o feijão puro já fica com um gosto, não é, completamente diferente do, no feijão que se faz normalmente em que se põe um pouquinho de toucinho, um pouco de carne-seca e, e o refogado, né? A senhora entende de cozinha?
DOC. -  Não. Só entendo de comer, de apreciar o gosto. Agora (inint.) desculpe a interrupção, é que eu não sei qual é a diferença entre o cozido. O que vocês chamam de cozido?
LOC. -  O cozido é feito com uma carne própria, é o peito ou a capa do filé. São carnes fiapentas, né?
DOC. -  (inint.) feijão?
LOC. -  Não. O cozido, o cozido leva a carne, que só pode ser uma dessas duas, ou a capa do filé ou o peito, leva paio.
DOC. -  Não sei o que é.
LOC. -  Lingüiça de padre.
DOC. -  Ah.
LOC. -  Chamam de paio ou lingüiça de padre. É aquela lingüiça escura, grossa e magra. Leva lombo, carne-seca, há quem ponha toucinho. Agora leva os legumes, abóbora, batata-doce, aipim, couve, repolho, nabo, cenoura, e lá em casa nós ficamos mais ou menos nisso. Há quem ponha batata-inglesa, quem ponha banana.
DOC. -  É uma delícia. Também é só aquele prato o dia que se faz cozido.
LOC. -  É só aquele prato. Agora o modo de servir. O caldo que fica, aquele caldo é servido separado com torrada. Primeiro toma-se o caldo. A minha mãe fazia depois com o caldo, o resto do caldo fazia um pirão de farinha, de farinha de mesa. E então servia-se o cozido, este pirão, as carnes vinham num prato, os legumes noutro. Eram, ficavam três pratos. O pirão, as carnes e os legumes. Quando o aipim é bom, aquele aipim que desmancha, aquele aipim clarinho, que é uma, né, uma maravilha. É, o problema é, ah, encontrar esse aipim. Eu gosto muito de batata-doce também, quando a batata é, você diz que é enxuta, aquela batata de, seca, porque há uma batata enjoada, ela fica escura, né, a batata-doce boa é aquela clara. Então eu, eu me acabava no tal de cozido, mas cozido é prato pra inverno, porque é um prato que, quem come um bom cozido, depois ele vai transpirar, né? Agora há um prato que eu não sei se na sua terra existe: o guando.
DOC. -  Não. Como é?
LOC. -  Na Bahia eu ouvi chamarem o guando de feijão-andu.
DOC. -  Feijão-andu?
LOC. -  Andu.
DOC. -  Como é?
LOC. -  O guando é uma leguminosa. Dá umas favas como o feijão, mas é um arbusto. Tira-se o guando quando ele está verde ainda, mas já consistente. Ele é debulhado e é cozido como o feijão. Lá em casa costumamos fazer com lombo. E come-se ou com arroz e bife ou com arroz e peixe. Agora o meu médico, que é muito guloso, ele gosta do guando com, gosta muito do guando com o lombo, com 'bacon', com paio, com presunto. Então deve ficar um guando fora do comum, né? Mas o, somente com o lombo já é uma delícia, sabe? É muito gostoso. É época de, de guando, então uma vez por semana mais ou menos há essa variação lá em casa, do, do guando.
DOC. -  O senhor, o senhor falou que em geral come feijoada no inverno, por causa do clima, etc. No inverno também o senhor costuma, eh, costuma ter sopa? Costuma fazer sopa na sua casa?
LOC. -  Não sou muito fã de sopa não. Eu, a sopa entra o legume. Normalmente entra carne gorda.
DOC. -  (riso)
LOC. -  Nos tais dias em que eu não estou com muita vontade de jantar, se tiver uma sopa eu então tomo o caldo. Mas bem coado, é só o caldo da sopa com torrada, e pra mim, bem quente, satisfaz. Mas sopa de entulho, conhece?
DOC. -  Não. De entulho?
LOC. -  É. A sopa de entulho é, o nome está indicando, né, massa, eh, carne e legumes. Então fica aquela tremenda sopa carregada. E mesmo os portugueses conhecem como sopa de entulho. É gostoso. Mas isso uma vez na vida outra na morte, né? Não é pra todo dia.
DOC. -  E massas? O senhor não falou ainda de massas.
LOC. -  A minha mulher fez um curso de massas logo no começo do nosso casamento, sabe? Então eu acho que eu comi massa pro resto da minha vida. Até hoje ela ainda faz, sabe? De vez em quando um pastelão, um empadão, ela gosta muito de bacalhau e uma porção de coisas "à la cr`eme" e eu não gosto. Mas ela faz uma torta de bacalhau que é um negócio muito sério, sabe?
DOC. -  Torta de bacalhau?
LOC. -  Torta de bacalhau. O bacalhau é um dos meus pratos favoritos. Eu gosto do bacalhau grosso, aquele bacalhau raro, frito em azeite, mas azeite de alta qualidade. Então, eu acho que só o bacalhau chega. Mas gosto de bolinho de bacalhau moderadamente. Gosto de bacalhau à Gomes de Sá, à espanhola, eh, e o tal, e a tal torta de bacalhau. É um prato muito bom, mas bom mesmo, coisa fora do comum. E as outras tortas que ela faz lá, de camarão, torta de peixe. Eu gosto da parte assim mais do recheio, menos da massa. A massa não, eu já gostei mais de empada do que gosto. Gosto de pastéis. E por incrível que pareça, esses pastéis de vento de, dessas lanchonetes que eu não sei como é que eles conseguem fazer uma massa tão delicada, né? Então é aquele negócio, desmancha na boca, e aquele, aquele premiozinho de um pedacinho de queijo assim num canto, né? Mas como distração, vai.
DOC. -  O senhor que gosta tanto de bacalhau, por acaso o senhor conhece ou alguma vez já provou um peixe que existe lá na minha terra?
LOC. -  Pirarucu?
DOC. -  É.
LOC. -  Não. Mesmo quando andaram fazendo propaganda aí, eu, peixe de rio, eu acho que não comi nada até hoje. Não comi o tucunaré, não comi nem um que anda muito na moda aí, a tal da tilápia.
DOC. -  Tilápia?
LOC. -  A tilápia é um peixe africano muito fácil de criar porque é, é herbívoro.
DOC. -  Mas esse, esse pirarucu, se alguma vez o senhor tiver a oportunidade, existe um prato deliciosíssimo que ele é assado e depois de assado a gente come com, no caldo de leite de castanha do-pará, não é? Tira o leite da castanha-do-pará e come com o pirarucu e com farinha-dágua, aquela farinha, fica muito gostoso. É muito pesado, né?
LOC. -  Bom, também nunca comi tartaruga nem sopa de tartaruga e acho que não vou gostar porque deve ser um prato pesado.
DOC. -  É. Além de ser pesadíssimo ele tem um aspecto horroroso também, né?
LOC. -  E deve ser muito gorduroso.
DOC. -  Exato.
LOC. -  De modo que, acho que vou morrer sem provar essas coisas. Como vou morrer sem provar caviar e outras, outros pratinhos que andam por aí, que não me atraem mesmo. De vez em quando aparece um prato estrangeiro aí e, e entra no, no, no, no normal do brasileiro, que é o caso do estrogonofe, mas eu tenho a impressão que o estrogonofe que se come por aqui é um estrogonofe abrasileirado, né? Não deve ser o que fazem por lá, porque eu já vi estrogonofe de tanto jeito e feitio, com tanto gosto diferente que eu afinal de contas não sei bem o que seja estrogonofe. Mas toda a comida que a, tem a aparência complicada não me atrai, mas não me atrai mesmo. Eu não sabendo o que é ... Porque eu tenho conhecimento por exemplo de pessoas que comeram cobra. O meu irmão mais velho, que foi caçador emérito, esse cidadão dizia que o rabo do lagarto é uma delícia, do, e o rabo do jacaré. E ele matava e caçava, caçava mesmo. Ele parou de caçar quando ele teve um acidente circulátorio, está com, com o braço, assim a mão direita um pouco tolhida, mas agora aos sessenta e poucos.
DOC. -  E rã o senhor nunca comeu?
LOC. -  Eu já vi a rã pelada, a rã descascada.
DOC. -  É uma carne branca.
LOC. -  É uma carne branca, limpinha, mas depois de ver a rã viva eu não, não me animei a comer a rã morta, sabe? Eu não (sup.)
DOC. -  (inint./sup.) se não avisasse, se não disserem nada, se o senhor comesse ia achar deliciosa.
LOC. -  Bom, por, por causa disso, por causa disso muita gente tem comido aí gato, né?
DOC. -  É isso mesmo.
LOC. -  Gato, e, e na minha, na minha rocinha aí em Bemposta, matamos um (sup.)
DOC. -  (sup.) É uma carne branca muito linda (sup.)
LOC. -  (sup.) Matamos um ouriço-caixeiro.
DOC. -  Como é? Mataram o quê?
LOC. -  Um ouriço-caixeiro, conhece?
DOC. -  Não.
LOC. -  O ouriço-caixeiro é um bicho todo espinhento. É horrível, horrível e eu várias vezes tive oportunidade de matar ouriço na estrada com o carro e evitava matar e um dia comentei lá com meus empregados: olha eu ma... deixei de matar uma ouriça com um filhote. Mas o senhor não matou não? Aí eu digo: ah, matar o bichinho. Bicho desgraçado, doutor, pode matar, o senhor mata sem dó, porque o bicho é, o bicho não presta mesmo. Eu depois é que vi que o bicho não prestava mesmo, porque quando pega um cachorro é uma tragédia. Eu vi um cachorro lá em cima trespassado de, de, de, de espinho, mas de dar dó. De espinho atravessar o dedo do cachorro.
DOC. -  Ai, que horror!
LOC. -  A patinha do cachorro de fora a fora, a boca, os flancos do cachorro, uma coisa tremenda. Olha, sem exagero, mas sem exagero, dois homens tiraram com alicate mais de oitenta espinhos do, do, do cachorro. E esse ouriço foi morto porque quando eles estavam cercando, quem viu o cachorro espetado fui eu, gritei pelo empregado porque eu estava fazendo um trabalho num, num, numa, num morro. Era uma caixa-dágua. Gritei, ele voltou. Voltaram todos, né? Eu digo: olha, o ouriço desgraçou o, o cachorro. Mas o cachorro voltou em cima do ouriço, aí, aí, é que ele ficou com espinho pra todo lado e pe... Quando eles estavam cercando o ouriço lá por trás do barranco onde eu estava, eu vi o ouriço se aproximar. Gritei, eles ... Bicho fácil de morrer, deram uma cacetada na cabeça, ele morreu. Aí um dos empregados apanhou o ouriço assim: carne deliciosa. Eu disse: nossa senhora! Há pouco tempo matamos um gambá. Mas aí esse rapaz já tinha ido embora, ninguém se animou a comer o gambá. Mas há quem coma gambá, ouriço, toda essa bicharada de mato.
DOC. -  O senhor já, eh, já provou, já comeu alguma vez caça, sem ser essas que o senhor já falou?
LOC. -  Olha, o meu irmão trazia pra casa, trouxe caça, carne de tatu, trouxe porco-do-mato que ele acha uma maravilha, tudo isso. Eu comi paca.
DOC. -  É?
LOC. -  Comi paca no Espírito Santo, porque a paca é um animal, é um roedor, é um animal muito limpinho, se alimenta de, de raízes de, de plantas, é um milho. É um bicho de alimentação limpa. A carne de paca é branquinha, é muito delicada, mais delicada que a carne do porco.
DOC. -  Perdiz o senhor já provou?
LOC. -  Aliás, dizem ...
DOC. -  Perdiz.
LOC. -  Não, nunca comi. Caça assim de, de pena não comi, porque aqui na minha fazendinha há jacu. O jacu é maior que um galo e menor que um peru. É um bicho de porte bonito. Mas eu fico com pena de matar o bicho, sabe? Então não caço, deixo ele pra lá viver a vida dele. Não, tenho muita pena.
DOC. -  O senhor falou em caça, por exemplo lá pro norte costumam comer pato com, eh, com tucupi. O senhor já ouviu falar isso?
LOC. -  Tucupi. Bom (sup.)
DOC. -  (sup.) E também existe um outro pato, um prato que ...
LOC. -  Um pato?
DOC. -  É. Alguma vez o senhor provou?
LOC. -  Não. Eu tenho um amigo que é de família paraense.
DOC. -  Os paraenses comem muito isso.
LOC. -  É. E eles comem o tal do pato no tucupi e a tal da maniçoba. A maniçoba um pessoa que comeu me disse que olhando pra aquilo (sup.)
DOC. -  (sup.) É horrível (sup.)
LOC. -  (sup.) Bom, diz que o gosto é bom, que depois come, mas se olhar muito não vai comer não. Porque eu acho que a maniçoba deve ser como a sopa de pedra, né? As folhas do, do aipim entram ali pra, pra constar.
DOC. -  É porque tem o aspecto da tartaruga que tem um aspecto horroroso, né?
LOC. -  Eu, ainda não, não me enfronhei nem pato no tucupi e aliás não gosto muito de pato, eu acho a carne do pato escura, eu gosto muito da carne da galinha que é ... E, eh, assim de aves domésticas eu gosto muito do marreco de Pequim.
DOC. -  Marreco de Pequim? (sup.)
LOC. -  (sup.) Porque a carne é branca como a da galinha, com uma virtude, que tem um tremendo peito, que um, eu acho que um homem normal não come um peito de, de marreco, sozinho. Não tem condição. A, a carena do, do, do marreco é muito longa.
DOC. -  Carena, o que é carena?
LOC. -  A carena é uma das, das características das aves. É um osso que fica perpen... é um, é um, não é bem um osso, é um `diverticulus' perpendicular ao externo. A senhora deve reparar no, no, no peito do, da galinha, há uma parte em que há um osso triangular, como uma espécie de quilha, é quilha ou carena. É aqui, carena é termo náutico. É exatamente a quilha e separa aqueles dois fechos musculares, não é, que pra mim é o melhor da galinha é o peito, o peito e os miúdos. Quando eu estou com paciência, a carne do pescoço. Mas não gosto das pernas e quartos e coxa, eu acho a carne escura.
DOC. -  O senhor falou em miúdo. O senhor gosta de miúdo de, de boi, de vaca?
LOC. -  Nem todos. Gosto de fígado e, e bucho, agora, rins, coração, bofe, não.
DOC. -  E depois rins parece que tem um problema, é complicado pra preparar, o prato tem que ser muito bem preparado.
LOC. -  Bom, o bucho também, deve ser preparado por uma pessoa com muito escrúpulo, com muita paciência porque (sup.)
DOC. -  (sup.) Esse negócio exige uma limpeza (sup.)
LOC. -  (sup.) É. Exige uma limpeza muito grande. E se a gente pensar bem, acaba não comendo, sabe? Mas um ensopado de, de bucho, de tripa com batata é uma, é uma coisa muito, muito gostosa, né? E o bife do fígado eu gosto muito. Gosto também do fígado picadinho, moído, né, e em cima do, do refogado eu não sei o jeito que se faz, em cima dum pirão, dum, de um, de fubá do, do angu. Já provou? É gostoso.
DOC. -  Eu não gosto muito de miúdo não. Sei lá, eu não, mas eu como mal à beça. Eu só como carne praticamente. Agora uma coisa: doces, o senhor gosta de doce? Sobremesa de um modo geral? Doce ...
LOC. -  Já gostei mais de doce que hoje. Mamãe era uma doceira emérita, doce de calda, esses doces de, familiares, doce de banana, doce de laranja e doce de batata, doce de batata-roxa, que é uma delícia. E aqueles docinhos que toda criança adora, doce, o pé de-moleque, doce de leite, conhece pé-de-moleque?
DOC. -  Conheço.
LOC. -  A minha, minha mulher anda fazendo uns pés-de-moleque ultimamente lá no, no, na fazenda e é uma perturbação, porque eu começo e não tenho vontade de acabar de comer, né? Amendoim é uma delícia, né? Tudo que entra amendoim é gostoso.
DOC. -  É verdade (sup.)
LOC. -  (sup.) É o amendoim é a, vai bem em qualquer, em qualquer doce. Mas hoje eu como menos do que comia na, na minha mocidade. Não é precaução não, sei lá. Mas tudo quanto é doce brasileiro eu gosto: goiabada, bananada, marmelada, pessegada, doce de leite principalmente, gosto muito de doce de leite. Agora esses doces complicado, bolo de casamento, esse negócio, eu não sou muito fã não. Agora a minha mulher quando cisma de fazer doce, nos aniversários que ela resolve, ela, a família dela é de grandes doceiras. Há um negócio chama-se `kiss-me', que cada receita leva vinte e quatro ovos, é um doce muito barato. Mas é dos tais que começa a comer e não te ... Todo mundo quer saber a receita, e papo-de-anjo, madalena, tudo isso se faz lá em casa e, mas quase sempre nos aniversários, né, assim nas festas.
DOC. -  Assim que tipo de sobremesa que o senhor prefere, que o senhor gosta mais?
LOC. -  Fruta.
DOC. -  E, eh, doces, esses doces normais que a gente faz como sobremesa. Sem ser esses, esses assim pequenininho, né, mas que são, que a gente vê mais em aniversário, festas, etc.
LOC. -  Ah, não, doces só esses doces de, de fábrica mesmo: goiabada, goiabada cascão, né?
DOC. -  Pudim por exemplo o senhor não gosta?
LOC. -  De vez em quando, né? Pudim de leite. E até mesmo um doce que se faz com o, o leite condensado, joga-se uma lata de leite condensado no, na panela do feijão, deixa cozinhar junto com o feijão e, e é uma delícia, né?
DOC. -  Fica gostosíssimo. Não conhecia não? Ah, ensine pra ela como faz.
LOC. -  Não, é, é, é só jogar dentro da panela do feijão. A lata fechada. A senhora lava bem a lata, tira o rótulo, lava bem a lata e deixa cozinhar dentro da panela do feijão. Eu não sei o tempo. Se a senhora quiser eu telefono pra casa agora e lhe digo.
DOC. -  Eu acho que demora duas horas, não é?
LOC. -  Eu sei que (sup.)
DOC. -  (sup.) Fica uma delícia (sup.)
LOC. -  (sup.) É um doce de leite. Mas muito gostoso.
DOC. -  Por que na panela do feijão? É cremoso, né (sup.)
LOC. -  (sup.) Bom, porque a panela do feijão demora a cozinhar, né? O feijão leva aquele tempão, pra, né? É o que leva mais tempo. Então eu lhe digo com segurança o tempo que leva. Mas há umas variações aí de frutas, por exemplo, morango com açúcar, morango com creme 'chantilly' e até morango puro é bom mesmo.
DOC. -  Agora assim, saindo um pouquinho desse assunto, alguns dados. O senhor, o senhor disse logo que nós chegamos aqui que o senhor estudou no Pedro II. Será que o senhor podia falar um pouquinho a respeito do Pedro II da sua época?
LOC. -  Hum, aí eu não vou poder falar pouquinho não, porque eu tenho uma saudade muito grande do meu colégio, foi uma época em que eu, como há uma poesia aí famosa que termina dizendo: "eu era feliz e não sabia". E guardo um carinho muito grande do meu tempo de colégio, porque era um tempo em que havia respeito, havia camaradagem, havia um espírito de união, como não há hoje. Não havia maldade. Nós éramos jovens, éramos idealistas, éramos, éramos avançados, papai e mamãe naturalmente, eh, achavam que nós estávamos assim pondo as manguinhas de fora, mas chegamos até a fazer uma revolução no colégio, na revolução constitucionalista o Pedro II se revoltou, a história terminou em discurso, foi um negócio muito bacana, mas não havia essa coisa de se pensar em jogar bomba em ninguém, em se, se matar, se assassinar, seqüestrar e roubar, nós éramos garotos levados, mas nós tratávamos os bedéis do colégio com toda a cortesia, nós dávamos senhoria aos serventes do colégio. Não se faltava com o respeito, salvo um deles que tinha um apelido meio, meio assim salafrário, um apelido impróprio, e esse ele não se dava mesmo muito ao respeito não. Mas mesmo essa brincadeira com o tal do Manuel era uma brincadeira carinhosa. Todo mundo gostava dele. Nós tínhamos os nossos serventes lá com apelidos: havia o Bode mas ninguém teria coragem de chamar o senhor Otávio pela frente de Bode, o apelido era por trás, né? Nós tivemos a sorte de ter professores fora do comum.
DOC. -  O senhor podia, eh, lembrar alguns desses professores que o senhor teve, né?
LOC. -  Olha, lembrar com muito carinho mesmo, um vivo: Antenor Nascentes. Um homem de uma cortesia impressionante. Nunca esse homem elevou a voz, nunca ele maltratou um aluno com, um, um pouco de menosprezo, por uma tolice dita, ele está vivo e eu gostaria se possível um dia de manifestar ao Antenor Nascentes a admiração extraordinária que eu tenho por ele. Eu fui aluno de Oiticica, Escragnolle Dória, Miguel Seve, Jonathan Serrano, Everardo Backeuser.
DOC. -  Grandes professores.
LOC. -  Grandes professores.
DOC. -  O Oiticica então.
LOC. -  O Oiticica, o Oiticica era um revoltado, anarquista, como político ele era um tremendo trapalhão. Mas um homem de uma integridade extraordinária. Como professor era o máximo. Eu fui aluno de Gastão Rouche, fui aluno de quatro e cinco, eu nunca, acho que nunca tirei uns seis com o Rouche. Quando passei pra faculdade, nós tínhamos um grupo de seis, oito alunos que estudávamos juntos e o único que lia francês era eu. Eu era o tradutor, porque a partir do segundo, terceiro ano é que começaram a aparecer os livros em edições espanholas. Eu tive professores fracos, mas tive professores como eu acho que dificilmente aparecerão. Um deles, Valdemiro Potsch, um homem que tinha uma técnica de ensino fabulosa, era um homem que dava a nota de zero a dez.
DOC. -  Professor de quê, ele?
LOC. -  História natural. E ninguém reclamava da nota do Potsch. O Potsch era um homem que normalmente falava baixo. Se houvesse qualquer zunzum na sala, ele diminuía a voz dele. E se o zunzum não parasse ele diminuía mais, não reclamava. As notas dele, ele tinha um sistema engraçado de dar nota. Ele começava pelo zero, porque havia zero. Quando passasse pro um, então os que não haviam tirado zero já sabiam que não iam tirar zero, e ia até o dez. Eu fui aluno de professores alegres, até contadores de anedotas. Neilor, Neilor mo... morreu muito novo, morreu com trinta anos de uma apendicite. Lafayette Rodrigues Pereira, quando estava de veneta ele contava suas anedotazinhas assim e todo mundo se divertia. E fui aluno de professores que falavam muito mal o português. Um deles era professor de desenho, eu não vou citar o nome, mas quando ele, havia um zunzum na sala, ele saía com um: façam o favor de se calarem. Mas isso era, era, era normal, o façam o favor de se calarem. Ele era um grande professor de desenho, mas o português dele era horrível. Fui aluno do professor McDowell no tempo em que havia, monsenhor McDowell, já havia instrução moral e cívica. Irineu de Freitas. Mas eu, eu lembro também com muito, muita saudade os funcionários do colégio, os funcionários administrativos, os, os, os inspetores. Os inspetores brigavam conosco, nos puniam, mas se houvesse qualquer briga de Pedro II com qualquer outro colégio, o que era comum naquele tempo, os inspetores brigavam conosco. Eu me lembro numa briga no colégio Sílvio Leite, em que o Nogueira, Nogueira de óculos, havia dois Nogueiras, Nogueira estava com o nariz sangrando porque levou uma tremenda cacetada na base do nariz. E eles brigavam conosco, mas brigavam sério. E engraçado que depois tomavam a nossa defesa. Eu me lembro da chegada do subchefe de disciplina, afobado, o Castro, e o Nogueira dizendo: os meninos não tiveram a menor culpa. Eu sei lá. Nós tínhamos sempre, com a, pintávamos muito, sabe?
DOC. -  E seus colegas, o senhor se lembra deles? O senhor tem contato com eles ainda?
LOC. -  Alguns. Eu tenho um colega de primeiro ano que é uma das grandes cabeças do Brasil, é um químico. Esse homem foi diretor técnico da Casa da Moeda, agora responsável por essas notas novas, Renato Ferreira Pereira, que é visita habitual aqui. É um homem muito simples, fisicamente escanifrado.
DOC. -  Escanifrado?
LOC. -  É.
DOC. -  Por quê?
LOC. -  Magro, mal acabado, sem dente, relaxado. Ele é capaz de aparecer aqui com uma calça de brim Curinga manchada, completamente indiferente ao aspecto exterior. E é uma sumidade. É um homem que conhece o mundo inteiro, fala diversas línguas, uma cultura fabulosa, completamente doido, eu vou lhe contar uma proeza do Renato. Há um parente dele doente. O médico acusa uma doença qualquer. Ele apanha os livros de medicina vai ler feito um doido aquela doença, a próxima visita do médico ele vai discutir aquilo a fundo com o médico e mete o médico, mete o médico num sarilho danado, ele não dá colher de chá pro médico. Tudo de gozação. Se ele chegar num ambiente assim comunista, ele é fascista. Se ele chegar num ambiente de direita, ele é esquerdista. E, e ele, o gosto dele é arrumar confusão. É um amigo de uma lealdade impressionante. Esse foi meu colega em mil novecentos e vinte e sete, a amizade vem há quarenta e cinco anos ininterrupta, viu? Sem o menor arranhão. E tenho outros colegas que, ainda hoje eu encontrei na, na rua um colega de, de colégio. Há um outro que casou-se mais de dois anos depois de mim. Enquanto eu criei cinco filhos ele criou quatorze.
DOC. -  Nossa!
LOC. -  Permanentemente eu tenho filhos dele aqui. No momento estão três. E agora o problema é que eu já estou cuidando dos netos, né? Dele e da mulher já não cuido mais porque ambos já estão com dentaduras, né? Mas os filhos e genros e, e netos andam por aqui. Estou com três filhos e um genro dele em tratamento. É uma figura assim de patriarca, sabe? E esse estudou direito mas não praticou advocacia não. Mora aqui no, no bairro mesmo, no Lins porque o Méier é tão grande que tem uma porção de, de bairros dependentes, né?
DOC. -  Por falar em neto, fale aí um pouquinho de seus netos.
LOC. -  Bom, isso é um assunto muito sério. Eu tenho cinco netos. Todos lindos. Lamento não ter a fotografia deles aí. Todos gostam do avô. O avô é duro com eles, como foi com os filhos, justo e carinhoso. Eu trato os meus netos com um carinho. Não é que o avô seja mais, mais dengoso, é que o avô chegou a uma idade em que ele avalia os erros que praticou com os filhos. Bom, bem entendido, quando o cidadão se preocupa com isso. Há muito avô que foi ríspido com os filhos e quer compensar isso fazendo todas as tolices possíveis pros netos. Não, eu não quero isso porque eu não quero estragar meus netos. Eu trato os meus netos com muito carinho, dou muita atenção a eles, mas todas as vezes que eles fazem qualquer tolice, eu chamo atenção, carinhosamente, mas sério. De modo que eu vou contar aí umas duas ou três anedotas de meus netos em relação a mim, duas da, duas histórias da minha neta mais velha. Ela vai fazer sete anos agora dia vinte. Essa menina há pouco tempo saiu lá da fazenda com os pais, umas duas horas antes de nós e nos deixou a mim e a minha mulher porque eles iam a uma festinha de aniversário. Quando eles se despediram eu estava na, no curral e fiquei dando adeus até o carro desaparecer na curva. Eu acho que ela, que ela é uma criança sensível, me viu assim sozinho, dando adeus, ela indo embora, ela virou-se pra mãe e disse assim: eu fico com uma pena de deixar meu avô sozinho aqui. E outra história, um parênteses aí, essa gravação vai ser analisada por quem? Pelas senhoras mesmo depois ou mais algumas professoras, alguns? Bom, não há nada de, não há nada demais então contar essa história. Eu devia ter vendido o sítio antes de ter feito a fazenda. Como não fiz isso, eu fiquei um pouco enrolado de dinheiro, porque eu ganho um bom dinheiro no meu consultório, porque eu sou um dentista veterano. Mas eu tenho três filhos estudando. E não privo meus filhos do conforto a que eles estavam habituados por causa dos meus problemas financeiros, de modo que a coisa ficou enrolada e nós lá em casa temos falado muito sobre falta de dinheiro. Essa minha neta, a C., está tratando de, dos dentes, ela está na fase de, de substituição de dentes, né? Está com a cara muito engraçada até porque está com umas falhas logo na, na frente. Um dia desses ela chegou aqui no meu consultório com três centavos e disse assim: olha, vô, eu trouxe esse dinheirinho pra você. Já pensou o que é isso pra um avô?
DOC. -  Que gracinha.
LOC. -  Eu achei a coisa impressionante.
DOC. -  Você falou tanto em falta de dinheiro ...
LOC. -  Nós estamos comentando lá os problemas de dinheiro essa coisa e tal, a menina me traz, ajuntou as moedinhas: vovô, eu trouxe esse dinheirinho pra você.
DOC. -  (inint.)
LOC. -  É. Ela veio dar uma ajuda pro avô. O irmão dela, o tal que é, é fora de série, esse garoto, ele gosta demais da fazenda, mas gosta mesmo, ele vai sozinho pra lá. Houve um domingo em que o pai, a mãe e os outros dois irmãos foram pra um clube com piscina, esse coisa, mas ele foi sozinho conosco lá pra fazenda. Ele se sente bem lá, ele se espalha, ele brinca, ele conversa.
DOC. -  Quantos anos ele tem?
LOC. -  Ele tem, vai fazer seis anos em agosto. Esse garoto há pouco tempo ele queria ir pra fazenda e não, pediu um tempo, essa coisa, não, não puderam trazer pra minha casa, eles moram nas Laranjeiras, nós moramos no Méier, e ele pediu ao pai pra trazer na sexta-feira e o pai não podia e disse que eles não vinham. E ele telefonou lá pra casa e falou comigo. O garoto estava desesperado, ele me estragou meu fim de semana porque ele me botou enervado, ele implorou pra ir pra fazenda. Então ele teve o seguinte argumento: você não é pai dele? Manda ele me levar.
DOC. -  (risos)
LOC. -  Os meus netos são todos desse calibre. A garota do, do, do outro, o mais velho tem três filhos du... uma menina e dois meninos e o segundo tem, eles se casaram com diferença de seis dias um do outro, o segundo tem um casal. A menina de quatro anos é muito vaidosa. E esse rapaz foi para os Estados Unidos num, em janeiro ele fez um curso de especialização e como ia ficar muito tempo ele levou a família. Então me deixou como procurador. E naquele, naqueles últimos dias de, de estada na, aqui no Rio de Janeiro, ele andava me enfronhando nos negócios dele. Um dia ele chegou lá em casa, eu estava muito cansado, já estava deitado, ele sentou na beira da cama e, e estava me explicando o que eu devia fazer, como eu devia proceder, a menina entrou no, no quarto e foi direto pra penteadeira da avó, apanhou a escova e toca a des... pentear cabelo. Escovava, escovava, escovava, escovava e olhava, ela faz trejeitos no espelho, ela bate, ela olha, eu aí catuquei o V. e nós ficamos prestando atenção naquilo. Quando ela se deu por satisfeita que ia saindo, ele disse pra ela: você está horrível. Ela virou-se pra ele com a cara acesa e disse assim: não, eu estou linda.
DOC. -  (risos)
LOC. -  Ela é convencida que é bonita. Mas todos eles são dóceis, são acomodados, são crianças que aceitam conversa, viu? E pra mim não fazem malcriação, porque eu não suportaria mesmo. Não aturei malcriação de filho e não vou aturar malcriação de neto. Eu sempre criei meus filhos com, sempre, com um plano feito. Tudo foi pensado, tudo foi medido, tudo foi, foi orientado, foi, foi observado. De modo que o resultado foi muito bom. A minha filha tem dezessete anos. Eu não posso olhar nem atravessado pra ela, porque ela vai chorar. Eu não posso dar um pitinho pra minha filha, ela não suporta ser observada. E faz por onde não ser. É uma menina que não tem amizades a não ser duas ou três coleguinhas do Pedro II e agora do curso, que nós observamos as famílias e nós acompanhamos aquilo tudo, então quando vão a festas, a mamãe vai atrás e é tudo muito sadio, muito direitinho, não tem nada de sair e a gente não sabe aonde vai, nem voltar às tantas, nada, dentro de casa, estudiosa, muito carinhosa, muito amiga de, da mãe, dos irmãos, de modo que ... Essa é a moça.
DOC. -  É a única?
LOC. -  É a única. É uma menina que nos deu problema logo que nasceu porque ela esteve muito doente, ela fez dois meses praticamente morrendo com desidratação. Custou a se recuperar mas, depois, ficou com uma saúde ótima. Praticamente ela não ... Fora um resfriado ou outro, ela não tem nada.
DOC. -  O senhor praticamente morou toda sua vida aqui, né? No Méier (inint./sup.)
LOC. -  (sup.) Aqui. Méier e Engenho Novo. Nunca morei noutro bairro.
DOC. -  Outra coisa, e também, ah, o senhor trabalha, desde quando o senhor se formou que o senhor trabalha aqui?
LOC. -  Sempre no Méier. Eu acho isso fundamental.
DOC. -  Isso é importantíssimo.
LOC. -  O profissional que muda de lugar constantemente ele não consegue fazer o que nós chamamos o nome dele. Então é muito comum, eu tenho esse telefone há trinta e três anos, é comum o cliente de, que desapareceu há dez, doze anos ele telefona, se lembra de mim, se tem o telefone. Então liga pra aqui. Porque há um detalhe na minha profissão: depois de muito tempo a senhora sabe, vem o cansaço, né? Eu não enjoei da minha profissão não. Eu não queria ser dentista, nunca pensei em ser dentista, eu pretendia ser diplomata, queria estudar Direito, mas não havia condições. Eu terminei o curso do Pedro II na, em plena depressão econômica causada pela, pela depressão americana. Os países satélites foram à derrocada também. De modo que havia dificuldade de emprego, ninguém tinha dinheiro e papai não ia poder sustentar meu estudo tendo filhos menores pra educar, eu não ia querer sacrificá-lo. Fui estudar odontologia porque ele era dentista, o curso era mais curto, eu tinha facilidade de me lançar na vida mais rapidamente. Mas gostei da profissão, é uma profissão em que o cidadão é inteiramente independente, porque nós não temos um patrão, um chefe, temos clientes que, se nos desagradam eles não voltam mais, nós temos muitos meios de, de impedir que um cliente volte ao consultório sem molestá-lo, sem brigar com ele. Mas da minha profissão, o que eu gostei muito foi cirurgia e até hoje o que eu faço com prazer é, por exemplo, uma extração bem difícil. Cidadão que me aparece aqui com abscesso, em que a anestesia vai ser difícil, é uma coisa demorada, é uma coisa complicada. Então é uma vitória pra mim. Eu há pouco tempo andava passando mal, um problema de, de um protozoário que andava aí infestando o meu intestino, e havia dias que eu chegava no consultório desanimado, porque a saúde não ajudava. Eu atravessei uma temporada assim perto de um mês e meio. Uma tarde em que eu estava bem disposto me apareceu uma cidadã com um tremendo abscesso. Mas uma coisa ruim mesmo. A criatura estava com dor há dois dias. Dor e fome porque ela não conseguia comer. O molar inferior, que é sempre o mais difícil de anestesiar, e eu perdi uma hora e quinze minutos para anestesiar o dente, que eu extraí em dez segundos. Porque eu tenho o capricho de não tocar no dente enquanto ele não está anestesiado. Não forço. Eu só tiro o dente depois que o cidadão não está sentindo nada. Quando eu acabei a extração eu estava bom. Eu estava me sentindo bem disposto. Não podia ter ficado mais cansado? Aí é a influência da, da, da, da, do, da vitória moral, né? E eu me absorvi naquela coisa, uma coisa que, que era um desafio e esqueci que eu estava indisposto. Então eu ainda gosto disso. Gosto mesmo. E volta e meia está aparecendo aí uma dor de dente ou um dente incluso que é um, é um problema sério. O ciso incluso é muito comum hoje. Eu ainda gosto. Mas não tenho razão de queixa pra, da profissão não.
DOC. -   Está bom.