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PROJETO NURC-RJ

DIÁLOGOS ENTRE INFORMANTE E DOCUMENTADOR (DID):

Tema: "Terreno"
Inquérito 0061
Locutor 0071 - Sexo masculino,25 anos de idade, pais não-cariocas, analista de sistema (informática). Zona residencial: Norte
Data do registro: 16 de junho de 1972
Duração: 50 minutos


Som Clique aqui e ouça a narração do texto


LOC. -  Bom, eu digo o seguinte: antes de começar, outra coisa você quer saber meu nome?
DOC. -  Não, não precisa (sup.)
LOC. -  (sup.) Não precisa.
DOC. -  (inint.)
LOC. -  Está oquei. Eu sou um cara meio esquisito. Eu, pode parecer até um pouquinho de falsidade, mas eu tenho várias maneiras de falar, tá? Uma delas é quando eu estou tratando de assunto sério e com pessoas que eu não tenho intimidade, ou seja, alguma coisa informal, formal, perdão. Outra é quando eu estou já num ambiente mais íntimo, como é o do meu trabalho, mas que tem pessoas do sexo feminino na sala. Eu embora com, com, com a pessoa do sexo feminino, eu às vezes tenho liberdade total de linguajar, quando existem outras pessoas, essa pessoa do sexo feminino pode se sentir chocada, tá? Então eu também seguro a minha maneira de falar. Agora quando eu estou num ambiente que eu posso abrir meu jogo totalmente, aí segura que vai ser pesado.
DOC. -  Mas pra nós isso não tem importância não porque o importante (inint.) o gravador assim de fora (sup./inint.)
LOC. -  (sup.) Hum, hum (sup.)
DOC. -  (sup.) O ideal seria que essas gravações fossem feitas sem que você soubesse (sup.)
LOC. -  (sup.) Certo (sup.)
DOC. -  (sup.) Mas isso envolve problema de ética (inint./sup.)
LOC. -  (sup.) Não, espera aí, tá, então eu vou dizer mais pra você. Meu caso não vai ser, eu não me ligo com uma máquina, tá, a minha inibição é pela não intimidade com você, oquei? Se você quer que eu daqui, que eu, que eu con... consiga atingir um, um nível de, de, de intimidade da conversa que eu estou, no que eu tenho liberdade total você só vai sentir isso lá pro fim da gravação. Eu, eu inclusive, vou ter de me esforçar, tá, pra esquecer que eu conheci você agora pra poder falar e você vai aturar os, os palavrões que você ouvir (sup.)
DOC. -  (sup.) Não, não tem problema nenhum (riso/sup.)
LOC. -  (sup.) Certo, faz de conta que você está assistindo um 'show ` do Chico Anysio (sup.)
DOC. -  (sup.) De jeito nenhum (riso/sup.)
LOC. -  (sup.) Já que você quer sentir esse meu outro linguajar, que eu acho que deve ser o certo, com liberdade total, não sei se você vai estudar as concordâncias e outras coisas mais. (sup.)
DOC. -  (sup./inint.) que a linguagem oferece (sup.)
LOC. -  (sup.) Pois é, mas também regio... inclusive regionalismos, tá? (sup.)
DOC. -  (sup.) Exato (sup.)
LOC. -  (sup.) Você ... Por exemplo, existem palavrões aqui que não são palavrões em outros lugares e tal, são só gírias, quer dizer, então você vai ter que aturar porque eu falo toda sorte de palavrões possível, não falo mais porque eu não aprendi.
DOC. -  Mas não se preocupa não.
LOC. -  Então está legal! Vamos conhecer aí a ...
DOC. -  Bom, o assunto é sobre terreno, um assunto popular (sup./inint.)
LOC. -  (sup.) Depende do terreno.
DOC. -  Exato (risos)
LOC. -  O que que você quer saber?
DOC. -  Você tem idéia de como começar, por exemplo, você poderia começar antigas viagens que você fez, as cidades que você conheceu, comparar essas cidades em termos de ...
LOC. -  Bom, você vai ter, eu vou, eu em grande parte, por exemplo, foi uma das viagens maiores que eu fiz, quando você perguntou se eu sou carioca, eu sou carioca paca, tá? Eu raramente saí daqui do, do Rio pra ir pra outro lugar. Então, um lugar mesmo que eu fui assim diferente, vamos começar do começo, que eu me lembre, foi lá pra Belém do Pará, tá? Belém do Pará é região amazônica, terreno, terreno em si, configuração do terreno, ele é molhado adoidado, tá, chove paca lá, no verão chove todo dia, no inverno chove o dia todo, e é fértil, é planície quase tudo, tá? Oquei? Que mais?
DOC. -  A própria cidade, por exemplo as ruas de Belém como é que são?
LOC. -  As ruas de Belém, a grande maioria delas já naquele tempo, isso foi em cinqüenta e oito, eram ruas calçadas, na maioria de pedras, construções numa grande parte antigas, está mais pro colonial, não sei se você conhece Parati, conhece Parati?
DOC. -  Não.
LOC. -  Parati é uma cidade tombada pelo patrimônio, sabe onde é que é, né?
DOC. -  Eu sei, sei mas não conheço.
LOC. -  Coisa mais linda que existe, aliás esqueci, Parati é um lugar específico que eu fui também e lá em ... Tem muita coisa assim antiga, entendeu? Tinha muita coisa antiga, contrabando adoidado de dar com o pé e que mais? Igrejas bonitas (sup.)
DOC. -  (sup.) Essas igrejas eram, eram planas, por exemplo, elas não são (inint.)
LOC. -  Não, não, nem. Belém não tem que você subir, entendeu? É tudo bem planinho, jóia.
DOC. -  Você ficou só em Belém, só na cidade, você foi pro interior por acaso?
LOC. -  Não. Fiquei ... Espera aí, ó, se você quer saber, você quer mudar, desvirtuar um pouquinho, saber da minha história em Belém, minha história em Belém é gozada. Os meus velhos são desquitados, tá, e a minha mãe casou outra vez com um oficial-médico da Aeronáutica. Então ele estava servindo em Belém na base aérea de Belém. A base aérea de Belém você toma assim por base, deixa eu ver, como é que é aquela ilha? É istmo, né, aquela ilhazinha. A base se você considerar, pô, a selva amazônica como mar, Belém seria o continente e a base era, era o istmo, tá? Era mais ou menos no meio da selva, genial pruma criança, pô, eu tinha onze anos, uma beleza! Eh, lá em Belém entre outras coisas eu tive uma experiência que pouca gente teve, graças a Deus, eu caí de avião, caí de avião no meio da selva amazônica, perto do Amazonas, eu sobrevoei muito aquela região (sup.)
DOC. -  (sup.) Pois é, por isso que eu ia lhe perguntar se você tinha conhecido a selva amazônica (sup.)
LOC. -  (sup.) Entendeu? Sobrevoei até perto de Manaus, sempre pousando em Belém, nessa única vez foi que nós não tivemos muito escolher o lugar onde pousar.
DOC. -  Como foi a experiência?
LOC. -  É, ah, um, bom, era um aviãozinho Catalina que é um hidroavião, que é o que se usa mais naquela região, famoso pata-choca, parece uma pata-choca e o infeliz já estava com os motores meio chumbados, né? Nós fomos, fo... um piloto estava fazendo hora de vôo, eu de vez em quando peruava essas viagens, então estava eu e o marido da minha velha de peru na viagem. Quando nós estávamos voltando, um dos avi... um dos motores começou a falhar, aquecer brutalmente, então ele teve que ser cortado. Então passamos a ter um motor só, ele é bimotor, acho que o avião dar falha naquele tempo, entendeu, era aquela tristeza, hoje ainda é! Então nós fomos, nós, e o outro motor já estava com muita hora de vôo, muito velho, começou a não agüentar, apesar do avião sem carga, ele parou, ele começou a não agüentar o excesso de esforço. Aí começou a esquentar também, isso eu não me lembro direito dessas coisas mais técnicas, eu sei que nós começamos a cair, caindo regularmente, perdendo altura em meio daquele matagal, quer dizer, se a gente tivesse que aterrizar ali mesmo tinha que se despedaçar nas árvores, oquei? E a nossa sorte foi que quando a gente já estava a cem metros do chão, se tanto, a cinqüenta metros, entendeu, eh, o, is... isso é que é uma delícia de você conseguir ver aquilo, você sabe o que que é um igarapé, né? Então o igarapé justamente o contrário do afluente, então a água, o, é como se fosse um, uma válvula do escape do Amazonas, então aquela água sai do rio acaba formando um braçozinho quase sem corrente, chega a um ponto que pára, não é como uma nascente que vai do rio, afluente vai desembocar noutro rio, então nós chegamos na cabeceira do igarapé, aquele rasgo na mata e aquele igarapé largo paca, a gente estava tentando chegar ou a Curralinho, uma cidade que tinha um campinho de pouso ou então chegar em cima de um rio suficientemente fluente pra gente fazer amerrissagem. Aliás você pode me dizer se o certo é amerissagem ou amaragem, aterrizagem ou aterragem, até hoje não sei qual é o certo, ou se os dois estão certos. E, graças a Deus, nós conseguimos entrar de bico dentro do, do igarapé e escapamos com vida, né? O pior foi esperar, que nós perdemos o rádio também (sup.)
DOC. -  (sup./inint.) exato (sup./inint.) como é que vocês foram encontrados (sup.)
LOC. -  (sup.) Esperar o, esperar o SAR encontrar a gente. Nós conseguimos comunicar enquanto o avião ainda estava voando que, que nós estávamos caindo dando mais ou menos a nossa posição depois nós perdemos o contato, levamos seis horas pra ser encontrados.
DOC. -  Como era o local onde vocês caíram, poderia descrever? O tipo de vegetação.
LOC. -  Olha, imagina uma, uma margem de um, de um rio no meio de lugar onde o homem nunca viu de perto, só do alto, eu não sei se já, se naquele lugar alguma vivalma já tinha pintado, entendeu? Bacana, em, em termos de natureza, agreste paca, bacana adoidado (sup.)
DOC. -  (inint.) mas não um agreste que a gente está acostumado a ver no nordeste, né?
LOC. -  Não, pô, você só via verde, jacarés, jacarés, quer dizer, se a gente caísse nágua, quer dizer, jacaré ali com fome e a gente esperando. Você, então, é aquela espécie quase de um, de um laguinho estreito e comprido, o igarapé é quase, como eu disse, é quase parado, o avião ali no meio e mato, mata, não é mato, árvores, com árvores caídas dentro do igarapé, aquilo que você, de vez em quando no filme de Tarzan então você vê aquilo, só que a, inclusive as margens não é como a margenzinha de rio que tem aquela terra, forma uma espécie de uma praia não, era mata até as bordas, tá? E seis horas depois é que encontraram a gente. A coisa mais engraçada no mundo (sup.)
DOC. -  (sup.) Vocês estavam com medo?
LOC. -  Medo a gente não, medo, olha, honestamente eu, eu, pelo menos, eu não vou dizer a você que eu não tenho medo, tenho medo, paca, tenho medo de morrer que eu, que eu, vou lhe contar, pavor de morrer. Gosto da vida, gostosa pra chuchu, com todas os, com todas as merdas que ela traz pra gente, mas no fundo, no fundo, ela é razoável, eu gosto de viver, mas, eh, na hora você não tem tempo de ter medo, tá? Na minha, ah, por exemplo, na minha atitude que era de nada fazer a não ser esperar, eu nun... eu nunca que teria saco nem cabeça pra rezar, tá, era atitude de tensão, não medo. Você não tem, você não se lembra de ter medo, não dá pra você raciocinar e você vê o, o, o, o desespero do, do, do piloto em si, do como fazer, tá, pra, pra tirar a gente da situação e, eh, e você não tem, tem tempo ... Porque depois que você cai, nós caímos, deu aquela tremedeira, né, acho que, que o mau cheiro no avião era total porque todo mundo se cagou nas calças. Tinha que, não tinha alternativa, a morte estava ali pertinho! Eu, eu sou assim, o troço acontece na hora, na hora, entendeu, tomo o susto, mas só aquilo, depois eu tenho a minha reação nervosa. O pro... o, o negócio era aquela, aquela tensão de espera, será que vão achar a gente, tá? Nós não tínhamos balsa dentro do avião, uma balsazinha inflável, estávamos sem ela, só tínhamos um papo-amarelo que é um coletezinho salva-vida (inint.) pro jacaré. Não tinha nem chance de alcançar a margem, oquei? O avião sem motor, sem condição de manobra dentro dágua pra tentar ancorar, certo?
DOC. -  (inint.) por outra região, os acidentes que ocorrem ali?
LOC. -  É a região, se eu, mesmo se eu consigo chegar lá na margem, cobra adoidado e onças e outros animais lá, anima... animais selvagens pequenos mas que podem matar uma pessoa e aranhas-caranguejeiras, o diabo-a-quatro, tá?
DOC. -  Eu interrompi você, você ia dizer, eh: o interessante é não sei quê. Eu interrompi (inint.)
LOC. -  Não me lembro, pode ser que ...
DOC. -  (inint.)
LOC. -  Pode, pode ser ... Pode ser que eu me lembre depois ...
DOC. -  Você lembra alguma coisa ...
LOC. -  Talvez seja isso, o interessante é que estava eu e, e o marido da minha mãe, tá, então, eh, os dois amores da vida dela estavam ali dentro e lá na base de Belém tinha um sistema de, de aviso por sirene, tá, quando tocava a sirene três vezes ha... havia um avião em pane pela região e seis toques era avião desaparecido. Ela está em casa, ouviu os três toques, pegou o carro foi até lá a torre de controle. Quando ela está chegando na torre de controle ela ouve os seis toques, então ela só: escuta, qual o avião que está desaparecido? O sujeito que não sabia que a gente estava lá dentro: ah, é o Catalina do tenente Pinto. Ela caiu desmaiada, entendeu?
DOC. -  Nossa!
LOC. -  Quer dizer, e o ... Ah, me lembrei, e o interessante é que quando os aviões, quando o primeiro avião passou pela gente, tá, o avião do SAR, Serviço de Busca e Salvamento, não viu a gente de primeira, dificilmente vêem, eles vão fazendo, eles vão quase que enquadrando regiões, tá, a gente já estava, pô, isso, já tinha o tenente Pinto em cima da asa gritando, claro que não iam ouvir, a gente fica tão desesperado pra ser encontrado, saudade de casa (inint.) seis horas que dá, você não sabe como é que é. E a gente grita adoidado: estamos aqui! Aquela história, mas não, não adianta que, que eles não ouvem, mas acabaram achando, aterrizaram lá, oquei, e vieram e apanharam a gente. O resgate também foi bacana, que foi umas cordas, uma escada de cordas lançada pro outro avião e a gente teve que passar com aquele troço balançando, pô, se segurando, tá, e aquele jacaré embaixo querendo morder a gente. Mas escapamos. Lá em Belém teve coisas geniais, por exemplo, tem uma noite, teve uma noite que eu fui dormir, apesar da casa ser toda entelada e tudo mais, você periodicamente fazia, eh, exame de sangue pra ver se alguma, pra ver se você tinha contraído malária, barra pesada, tá, eu um dia fui dormir, quando eu levantei o lençol tinha uma aranha caranguejeira que acho que ela queria ter relações sexuais comigo, ela estava me esperando na cama, entendeu? Era de dar com o pé aranha caranguejeira, entendeu, não era fácil não. A cidade em si Belém (sup.)
DOC. -  (sup./inint.) na própria cidade? (sup.)
LOC. -  Não na cidade em si Belém não, na base aérea (sup.)
DOC. -  (sup.) Na base, ah, tá!
LOC. -  Entendeu? Era meio violento.
DOC. -  E a cidade (inint.) alguma coisa da cidade assim.
LOC. -  A cidade quando venta você tem que tomar cuidado, senão você vai sair de galo na cabeça e com a roupa suja. Que as árvores da cidade são mangueiras. Então o verão, como eu fui lá no verão tem manga adoidado, você se enjoa de manga, tá? Então choveu, começou a, começou a ventar um pouco, começa a cair manga e, em outros lugares ainda tem jaqueiras. (risos) Sério mesmo, não é brincadeira não.
DOC. -  E as chuvas como são?
LOC. -  Olha, chove (sup.)
DOC. -  (sup.) São constantes (inint./sup.)
LOC. -  (sup.) Chove quase todo dia no verão, chuva rápida, então tem até um dito: vou me encontrar antes ou depois da chuva. Chuva tem mais ou menos hora, é engraçadinho o negócio. Em Belém o que tem é isso, minhas recordações são, que eu tenho hoje aos vinte e cinco, de um garoto de onze anos. Voltei sozinho de Belém de avião, sempre fui meio independente. Bom, que é mais?
DOC. -  Você falou de Parati, não é? Você poderia descrever Parati, a cidade?
LOC. -  Parati. Parati, Parati é indescritível, aquilo é o paraíso!
DOC. -  Como é que ela é, uma cidade alta?
LOC. -  Não (sup.)
DOC. -  (sup.) Baixa (sup.)
LOC. -  (sup.) Parati é beira de praia, tá? Lá tem umas, umas, uns morros, uns, umas colinas cercando, tá, que é aquela partezinha da serra do Mar e a cidade é tombada pelo patrimônio. Então se você comprar uma casa lá você não pode mexer na fachada da casa, você pode colocar lá por dentro o supra-sumo do modernismo, do modernismo, tá, mas fora de casa você tem que manter a fachada e conservar, oquei? Então as ruas são calçadas com os escravos, aqueles, aquelas pedras de tamanho irregular em vê, porque de, na hora, na hora que a maré enche a água do mar invade a cidade você tem que andar pela beirinha, de vez em quando você tem que molhar o pé. E Parati é uma, além de ser uma cidade altamente politizada, até foi engraçado pouco depois da revolução lá, a barra estava meio pesada e lá o pessoal é meio metido a moderno, esquerdismo lá é muito freqüente, aquele pessoal que criticava, não tem um, não tem um negócio na televisão de credi-direta? Critique a sociedade, melhor criticar a sociedade de consumo (sup.)
DOC. -  (sup./inint.)
LOC. -  (sup.) E montar numa moto do que dentro de um ônibus?
DOC. -  (sup.) Exato, é. (riso)
LOC. -  Quer dizer, essa garotada que, essas esquerdas festivas, isso pintava muito lá, inclusive e como o movimento, principalmente o pessoal de São Paulo era muito grande lá acabou por até politizar o, a cidadezinha: vote em Arena I e Arena II. (risos) Não tinha outro partido, era engraçado, paca. Mas a cidade é linda de morrer, uma graça, é a boemia, a vida de Parati não tem lugar não, mas a vida é uma turma, tem o Valhacouto, que é um barzinho, você sabe o que que é valhacouto?
DOC. -  Não.
LOC. -  Não? Você é de português não sabe o que é valhacouto.
DOC. -  Não sabe o quê?
LOC. -  Valhacouto, não sabe o que que é? (sup.)
DOC. -  (sup.) Não, não sei.
LOC. -  Valhacouto é antro de bandidos.
DOC. -  Ah!
LOC. -  Entendeu? Pelo menos eu li isso no dicionário. E o barzinho se chamava Valhacouto, tinha mais o bar do Abel, bar do Abel fecha mais cedo, no máximo três horas ele já está fechado, o Valhacouto não, o Valhacouto fica até oito horas da manhã, aí fecha o dia todo, o pessoal está dormindo. Pelo, pelo que o nome está dizendo, bebe-se cachaça, cirrose ali é mato (risos), entendeu, o pessoal não morre porque é conservado em álcool e é uma delícia!
DOC. -  E o mar, não é, você disse que é uma cidade (inint.)
LOC. -  É, mas é, é mar muito calmo, né, que ali tem uma baiazinha, entendeu? Agora tem doi... tem dois acessos ou por estrada que é, são as pirambeiras, uma estrada (sup.)
DOC. -  (sup.) Como são as estradas?
LOC. -  Até Porto Novo do Cunha, até Guaratin... até Guaratinguetá até Guará você pega praticamente Rio-São Paulo o asfalto, de Guará a Porto Novo a estrada boa é a de terra, de Porto Novo a Parati é uma via carroçável, entendeu, dá pra um carro de cada vez, entendeu, quer dizer, é uma parada pra se chegar lá por terra, e outro caminho é por mar. Você pega o trem aqui na, na Central e vai até Mangaratiba, tem que chegar lá no dia certo que é barco um dia sim, um dia não, e são oito horas de barca. Essas, essas tipos da Paquetá, aquelas menorezinhas, aquelas barcas. Mar joga à beça, tem que ter estômago forte e vai parando. Tem, e tem uma, tem uma ... Nós estamos desvirtuando à beça o assunto, tem importância? (sup.)
DOC. -  (sup.) Não, não tem importância não.
LOC. -  Tem um assunto engraçado. Primeira vez que eu fui, nós fomos de barca, né? Então a barca é cheia, oito horas em pé, detalhe, frio desgraçado, foi em julho que eu fui a primeira vez, e tinha um sujeito lá com mulher e dois filhos, tá? Na verdadeira acepção da palavra, um fodido na vida, tá, tinha nada, nada, nada, nada, nada. Esse sujeito, bêbado, de terno, aqueles ternos de gente do interior, aquela camisa sem gravata, aberta, puída, entendeu, chega pra mim e diz assim: não me entra na cachola. Senti que estava bêbado, não vou dar papo pra esse homem, vou ter que aturar ele oito horas de viagem, aí ele olhou pra mim, puxa pela manga: não me entra na cachola. Aí eu: o que que não lhe entra na cachola? Imagina que a minha cunhada me engoliu um 'roach`, aí fez com a mão dois, um 'roach' de quatro dentes, quatro dentes, mostrando dois, quer dizer, ele estava, ele estava vendo quatro. (risos) Ele começou a conversar comigo. Bom, ele era candidato a deputado federal pelo MDB mas tinha sido cassado (risos), entendeu, a mulher dele era obstrata (sic) (risos), obstrata (sic) era uma mestra no bisturi, o negócio era com ela: aliás eu estou precisando levar a minha filha numa colega, numa, numa colega da minha mulher que é oftalmologista. Ele pelo menos os nomes ele já tinha ouvido falar das especialidades.
DOC. -  (inint./risos)
LOC. -  É, já não era, já não era muito ignorante, sabia o, mais ou menos o que que era: que esses óculos dela não servem mais. Aí chamava a garota: vem cá pra você falar com o moço. Aí a garota: não enche o saco, papai! Vem cá sua filha da puta! E a mulher do lado, né, (risos) a mulher do lado, enfiou o cacete nele umas três vezes na viagem. E, e fe... felizmente duas horas depois ele saltou em Mamucaba, que aliás é bacana, ela só, a, o, a barca só ata... só atracava, não sei se a coisa mudou, em Angra dos Reis e em Parati, o resto ela pára longe, vem uma canoinha a remo e desembarca os passageiros, o cara pula pra canoa e desembarca. Esse cara estava com um baú, (risos) me pediu pra ajudar a carregar o baú pra botar na barca. Moral da história: o sujeito é daqueles de querer tirar uma reta e sair em ziguezague, então pra conseguir chegar com o baú na beira da, da, da, da barca foi uma áfrica, né, e o, conseguimos colocar o baú e ele pulou no barco, só que ele viu dois barcos e ele pulou no barco errado (risos) dentro dágua.
DOC. -  Isso foi mesmo em Parati ou em Angra dos Reis?
LOC. -  Não, em Ma... em Mamucaba (sup.)
DOC. -  (sup./inint.) está ótimo (risos/inint./sup.)
LOC. -  (sup.) Caiu dentro dágua, foi genial. Que a mulher já, inclusive a mulher já tinha ido no outro barquinho e ele estava indo naquele, molhou o pessoal que estava lá dentro, entendeu? Quando conseguem içar ele pro barquinho o animal ainda se levanta no barco, o barco jogando à beça, ele se levanta, levanta do barco pra me dar adeus, ainda me dizer que qualquer coisa, pra ele me proc... pra eu procurá-lo se precisasse dele na escola de educação física que ele dava aula lá. (risos) Eu não agüentei, o sujeito era uma figura, mas uma figura, valeu a viagem, ouviu? Eu já estava de saco cheio do homem, mas aquela queda nágua lavou a minha alma, pô, tirou o porre dele e lavou a minha alma. Mas foi sensacional, a, o, a barca toda rindo do negócio, entendeu?
DOC. -  Agora, voltando um pouco, você falou por onde que é Parati, que é pela estrada. Bom, a pergunta é:na estrada de São Paulo não tem problema porque a gente já conhece mais ou menos, agora, essas estradas secundárias perto de Parati?
LOC. -  (sup.) Essa via carroçável.
DOC. -  É.
LOC. -  Olha, não tem (sup.)
DOC. -  (sup.) Como é em termos de terreno? (sup.)
LOC. -  (sup.) Não tem, não tem nem, ela pelo menos no tempo que eu ia nem aplainada por máquina ela era, tá? Então você tinha que andar no máximo a vinte por hora com o carro, você tinha que subir uma pedra, descer, entendeu, com o carro. Se às vezes vinha um caminhão em sentido contrário, coisa rara de acontecer mas acontecia, caminhão é maior tinha preferência, não dava pra passar, tinha que ele vindo de frente, você de marcha a ré até um lugar que desse pro caminhão passar, e pirambeira!
DOC. -  Por quê? Existia ...
LOC. -  É quan... é justamente quando você está ultrapassando aquelas colinazinhas da serra do Mar, aquele restinho da serra do Mar, tá?
DOC. -  Quer dizer que não é uma planície não, né?
LOC. -  Não, Parati é uma cidade de, de, de, be... beira, à beira-mar, tá, quer dizer, ela em si muito pequenininha é toda no plano, mas você olhando do mar pro, você vê serras, eh, serra, um pouco ... Serra que você chama quando o troço é maior, montanha, não é bem uma montanha, colinas, tá? Tamanho, vamos dizr, do nosso Sumaré, no máximo, ou até menor, tá, coisas pequenas.
DOC. -  Essa estrada também é de, é toda na beira, né? De um lado é sustentada, mas do outro não, né, imagino?
LOC. -  É, do outro, do outro não é bem beira, é pirambeira, né, se você bobear você cai, tá? Ih, nessa estrada tem uma igrejinha antiga do tempo do jesuíta e que é a coisa mais singela e mais linda que existe, entendeu, tipo do lugar que você não vê nada, parece que você está fora do, fora, fora da civilização (sup.)
DOC. -  (sup.) Não tem vegetação não?
LOC. -  Tem, vegetação adoidado. Você não a, a menos da viazinha que você percebe a mão do homem não vê mais nada. No meio daquela, daquela, daquele, daquele mato, daquelas, daquela terra vermelha e tudo mais, você vê assim meio fora da estrada, mas a uns quarenta metros de distância, no alto de uma colinazinha, uma igreja já antiga, toda já carcomidinha pelo tempo e fechada, branquinha, branquinha, branquinha, entendeu? Ela é carcomida mas ela é conservada pelo menos em pintura, entendeu? Portas verdes e tudo mais, uma gracinha a igreja. Tenho a fotografia dela em preto e branco, parei até pra tirar, entendeu? Um lugar bacanérrimo. Outro lugar bacana parecido com esse não sei no litoral sul do estado do Rio. Litoral norte você já deve conhecer, tem Araruama, vai passando, eh, Iguaba, São, eh, São Pedro da Aldeia, Barra de São João, Rio das Ostras, Macaé. Rio das Ostras, você entrando na cidade de Rio das Ostras, pegando pra esquerda pela, pela ruazinha que vai beirando a praia, você acaba dando num lugar (inint.) meio difícil de passar, dá pra passar com o carro, mas também não é, não é nem rua e você vai dar na aldeia dos pescadores que é a, na margem da foz do rio da, do rio das Ostras. Então a gente ia pescar. A gente atravessava o rio das Ostras, a gente pedia um pescador daqueles pra pegar o barquinho pra atravessar a gente, ele atravessava, quando a gente voltava da pescaria ele atravessava de volta, que eu não era besta de, de botar o pé ali porque tinha caranguejo adoidado, podia pisar na toca de um, né? Então, eh, a gente, tinha uma picada aberta no meio do mato que nos levava a uma praia que você só, fora esse mato, você só tinha acesso por mar, porque essa praia era cercada por pedras quase que intransponíves, está bem? Mas isso tabém em termos práticos, tá, não havia, muito escarpada, não havia condição de você ir andando pelas pedras. Ir pro outro lado você poderia, você tinha que vir andando de Macaé, eh, ah, as pedras, vamos dizer, do lado. Você está de frente pro mar, do lado direito intransponíveis, do lado esquerdo pedras quase planas que ia dar num praião do tamanho de Copacabana totalmente deserto (sup.)
DOC. -  (sup.) Em termos, como a Praia Seca?
LOC. -  Não. Você conhece Praia Seca?
DOC. -  Conheço, não é deserto Praia Seca (inint.)
LOC. -  Você já foi a Praia Seca?
DOC. -  Eu fui a uma praia dessas deserta, mas não tinha nada (sup.)
LOC. -  (sup.) Mas você foi como?
DOC. -  Nós fomos assim por um caminho assim muito estreito (sup.)
LOC. -  (sup.) Eu sei, você foi (sup.)
DOC. -  (sup.) Não tinha saídas (sup.)
LOC. -  (sup.) Conhece alguém em Praia Seca?
DOC. -  Não.
LOC. -  Não, porque eu já fui noivo de uma menina que tinha uma casa em Praia Seca. Prai... Praia Seca (sup.)
DOC. -  (inint./sup.) escorregava o tempo todo (inint./sup.)
LOC. -  (sup.) É exato, Praia Seca, Praia Seca é, é à margem da lagoa de Araruama, agora tem o praião do outro lado, é isto que você estava falando. Praião violento, bate mar mesmo (sup.)
DOC. -  (sup./inint.)
LOC. -  (sup.) É mais ou menos (sup.)
DOC. -  (sup.) Mas não é ali a Praia Seca.
LOC. -  É, esse aí é o praião de Praia Seca, tá? Mas o, aquela, aque... o ...
DOC. -  Você estava falando de uma praia deserta.
LOC. -  É, essa, essa é perto de Araruama, essa, essa era mais pra Macaé, Rio das Ostras. Tinha uma pedra bem no meio, praia que o mar batia, uma pedra assim solta no meio da praia, lindo de morrer (inint.) e você não via civilização, se sentia o próprio Pedro Álvares Cabral, estava chegando por mar e descobrindo o Brasil, entendeu? Era outro lugar lindo, bacanérrimo, a gente passou lá, já passei lá três dias acampado, só pescando, o único contato com a civilização era o rádio, um silêncio, a não ser da, da, inclusive aonde a gente pescava tinha uma ilha em frente e quebrava o mar, então só (ruído de imitação) da aguinha batendo, você ouvir grilo dentro do mato, passarinho, mais nada, nada, nada, nada, nada, melhor do que sonoterapia, uma delícia o lugar, entendeu? Lá, por exemplo, aquela região em termos de terreno já é bem mais arenoso, né, já não é qualquer coisa que dá lá. Bom, tá, pra não fugir muito do tema, em termos de terreno aqui pela companhia a gente viaja adoidado, tá, pega todo região, eh, centro-sul de Minas e o norte de São Paulo, noroeste de São Paulo, é bacanérrimo! Você fica, parece, você sabe quando você está passando de Minas pra São Paulo, Minas é o fim da picada e São Paulo, pô, as plantações são aquela perfeição, entendeu, aquilo é que é terra boa, boa, paca, muito bacana também aqueles lugares, entendeu? O que que a gente pode falar mais de terreno?
DOC. -  Vamos falar do Rio, por exemplo, eh, o Rio como cidade (sup.)
LOC. -  (sup.) Continua lindo!
DOC. -  Eu sei que você disse que é um ser profundamente carioca, né, você conhece bastante o Rio.
LOC. -  Rio de Janeiro, fevereiro e março.
DOC. -  Então você poderia descrever o Rio, mas não precisa necessariamente ser uma descrição do tipo de terreno, mas (sup.)
LOC. -  (sup.) Tá (sup.)
DOC. -  (sup.) Dando uma impressão.
LOC. -  Bom, quanto tempo a gente ainda tem mais ou menos?
DOC. -  Temos uns cinco minutos ou dez mas não se preocupe com isso a não ser que você não disponha?
LOC. -  Não, não, eu estou perguntando pra poder saber como é que eu vou dividir a história. Ah, bom, nasci no Rio, na Tijuca, tá, conheço a Tijuca, bom, conheço o Rio de Janeiro todo, tá? Se você me mandar aí numa rua de Santa Cruz é capaz de eu saber o nome, sei mesmo, conheço muito o Rio de Janeiro, não me perco aqui de jeito nenhum. Pra mim, apesar de não conhecer as outras e reconhecer que existe encanto natural adoidado em outros lugares, acho que não tem lugar melhor pra se viver do que o Rio de Janeiro, oquei, em termos de povo, tá, em termos de belezas, só acho que ele ainda perde muito em vida noturna. Eu sou o coruja, tá, aliás depois, às vezes eu penso que eu não devia ter me casado, tá? Minha ... Vida de casado você é quase obrigado a dormir cedo, entendeu, e muitas vezes eu gosto de ir a lugares em que eu gostaria de ir sozinho; não por interesses outros, tá (sup.)
DOC. -  (sup.) Eu entendo.
LOC. -  (sup.) Mas porque, eh, muitas vezes a presença da mulher atrapalha e é uma minoria violenta aquela da mulher que acha muito natural o marido chegar na sexta-feira, dar a noite de sexta-feira pra ele, tá, minha mulher não é assim, infelizmente. Então eu acho que perde muito em termos de vida noturna. Você em pouco tempo fica cansado. Ou, ou você vai à Sucata ou não vai, ou você vai, agora tem mais o Assirius ou não vai, ou você vai tomar um chope num 'drugstore', num, o que mais? Garden, agora nem é mais badalado, ainda que seja no Garden, no velho tempo do Jangadeiro ou não vai, tá, os locais são poucos e como a concorrência é quase zero, eles não têm muita variedade. Então a única variedade que você tem em função na tua vida noturna é a companhia, tá, é o bom papo, oquei? Eu adoro papo. Acho que eu nasci pra ser filósofo, eu não fico discutindo sobre o sexo dos anjos e tudo mais o dia inteiro e esqueço a vida em frente a um copo de cerveja. Mas, pra mim, esse é o ponto fraco do Rio e ele tem uns pontos positivos: praia de graça.
DOC. -  Você gosta de praia?
LOC. -  Apesar da minha cor aqui amarelo-cadáver queimado dos frios do escritório, eu estou há cinco anos sem férias, entendeu, e esse ano que eu ia tirar minhas primeiras férias depois de cinco anos, a minha sogra teve uma hemorragia cerebral e ainda tive que antecipar as férias de uma semana e o mês exato que eu tinha ela ficou exatamente um mês internada, fora de si, louca, em que eu tive que praticamente ficar esse mês sem, quase sem comer e quase sem dormir. Ela estava louca, possessa e não admitia nada que a amarrasse, então você tinha que estar acordado do lado dela, entendeu? Palavrão adoidado, acho que a velha nunca falou tanto palavrão na vida dela. Ela ainda estava numa casa de saúde que era de uma, de uma irmandade, que era irmão os enfermeiros, eu acho que o irmão nunca foi tão chamado de filha da puta e tudo mais como foi chamado pela minha sogra, coitado! Chegava lá o irmão que era portugu~es, não é: como é que está a irmãzinha, está lá? E fazia o sinal da cruz. Vá pra puta-que-o-pariu. (risos) Se eu não entro o irmãozinho ficava : não, não, não é nada não, senhora. Parecia que estava vendo o diabo, sinal da cruz e tudo, é engraçadíssimo, irmão Lucas, o nome desse, desse sujeito, entendeu, ele era engraçadíssimo. Que ele, ela raramente dormia. A impressão que, que o médico tinha, se não tivesse ninguém pra informar a ele, nenhum familiar, se fosse uma pessoa, fosse um indigente, vamos dizer, ele ia ter certeza que aquele cara era viciado em tranqüilizante. Que não havia tranqüilizante que fizesse a minha sogra parar, quer dizer, dormir era besteira, minha sogra passou um mês quase sem dormir. Parar então que não parava. E então nos raros momentos de sono da minha sogra chegava o irmão Lucas. Chegava assim ó: (pausa de silêncio) a irmãzinha está dormindo? (risos) Acordou a velha, aí a velha: seu filho da puta, não está vendo que eu estou dormindo. Aí, ih, aí: seu veado, não sei o que lá, vá à merda, parará! Mas a velha su... tripudiava, coitado, o uso do, abusava do uso do palavrão, entendeu, impressionante! No dia que eu saí de lá eu jurei que eu nunca mais botava os pés naquela casa de saúde. Uma coisa é você conversar e outra coisa é você estár xingando o outro. Eu conversando com minha mulher tenho uma linguagem livre, paca, eu falo qualquer coisa com ela, se eu estiver brigando com ela eu sou incapaz de chamar ela de burra, entendeu? Acho que, pô, eh, aí o troço já, já parte pra agressão e fica violento, eu não gosto quando a gente está falando sério de levar esse tipo de conversa com esse, com esse tipo de palavreado. Bom, aliás quando você chegou aqui eu, o outro rapaz que você ia entrevistar pra não dizer nome, já que você disse pra não dizer nomes, irmão Lucas eu disse porque irmão Lucas existem muitos por aí.
DOC. -  Exato, né?
LOC. -  Eh, eh, ele vive dizendo que eu, que eu fi... que eu vivo lendo dicio... dicionário. O negócio seguinte, a gente instituiu lá naquela sala por causa daquela menina que tem lá, não sei se você chegou a ver, um caneco de pedra, o caneco de pedra é pro, pra ser dado ao sujeito que desse maiores pedradas, pedradas seria os palavrões ditos sem perce... sem sentir quando ela estivesse presente. Eu, por exemplo, tenho a liberdade de falar com ela o palavrão que quiser, entendeu, mas eu não falo na frente de mais ninguém. Ela pode, eh, eh, é prerrogativa dela dar essa liberdade aos outros, tá, não sou eu que vou querer abusar dessa prerrogativa, quer dizer, esse direito que ela tem. Bom, a, o nosso amigo (inint.) ele foi 'hors concours`, ele fo... aquele esquece mesmo. Mas, então, ele falou outro dia em voz alta, que o outro rapaz estava enchendo o saco dele, ele disse o cara era um paquete: você é muito paquete. Aí se lembrou da presença da menina (sup.)
DOC. -  (inint./sup.)
LOC. -  (sup.) Não se sabe o que quer dizer?
DOC. -  Sim, eu sei o que é, mas como (sup.)
LOC. -  (sup.) Chato! (sup.)
DOC. -  (sup.) Mas como nome feio não, né?
LOC. -  Não, paquete tem outro significado, certo? Também chulo, vamos dizer assim, oquei? Mas inclusive não está no, no, no, esse significado, que é um furo danado (sup.)
DOC. -  (sup.) Não está no dicionário? (sup.)
LOC. -  (sup.) Não está no Aurélio Buarque de Holanda. Aliás, o Aurélio de Holaque (sic), Buarque de Holanda tem furos homéricos, eu acho, tá? E vou te dizer, e vou, e vou fazer uma lista de palavrões aí pra ficar registrado, que precisam ser registrados, se ele ... Ou ele não registra nenhum (sup.)
DOC. -  (sup.) Exato! (sup.)
LOC. -  (sup.) Ou ele registra todos. Registrar alguns a, eh, a seu bel prazer eu discordo totalmente. Eu não sei quais os motivos que levam ele a usar, mas que, meu Deus do céu, no Brasil todo é difundido o uso do palavrão, desses palavrões que eu vou citar já, já. Então quero aquilo incluído, tá? Bom, então eu fui dizer pra ele, ele ficou todo envergonhado: não tem nada de mais não, Zé, paquete, na gíria, segundo Aurélio Buarque de Holanda, é um sujeito elegante. Sabia disso? Pois é. Então, então ainda disse pra ele você pode pedir perfeitamente ou chamar a nossa secretária, se está com o botão solto na camisa e você não está conseguindo, eh, colocar a linha na agulha e pedir a ela pra enfiar a linha no cu, porque cu não é chulo e é o cu, é o buraco da agulha, sabia disso? Também é, entendeu? Quer dizer, tudo que, a maldade vai estar em quem ouvir.
DOC. -  Exato, é.
LOC. -  Certo? Então, ele disse que eu vivo lendo dicionário. É lógico, quando eu era garoto, que eu descobri merda dentro do dicionário do Aurélio Buarque de Holanda aí eu saí catando todos os palavrões que eu sabia. (risos) Então quando eu cheguei por exemplo em puta, eu vi lá: ver meretriz. Você já deve ter visto isso, já deve ter essa (sup.)
DOC. -  (sup./inint.)
LOC. -  (sup.) Meretriz. Aí dá a definição: também chamada de ... São quarenta e nove, se eu não me engano, no... quarenta e nove nomes: acreana, não sei lá o quê, bagajeira, biscaia, eh, eh, frete, mulher-à-toa, mulher-de-fandango, mulher-do-fado, e vai por aí afora, entendeu? Tem, no... então, outro dia, eu estava diz... dizendo esses nomes todos, então ele não se conforma porque eu tenho a minha memória boa, então ele diz que eu sou o homem-dicionário. Agora, então vamos falar dos palavrões. Eh, vamos ver se eu consigo lembrar, lembrar dos que, dos que não estão. Existe lá como chulo ou como gíria, eu não sei, porrada, tá? Tá legal, me diz o que que é. Mas não diz porra.
DOC. -  Não está registrado porra?
LOC. -  Hum, hum, negativo. Porra tem pra mim tem dois significados: ou é interjeição (sup.)
DOC. -  (sup.) Exatamente.
LOC. -  (sup.) Ou então significa, eh, esperma, tá? O que mais? Letra pê tem mais alguma coisa? Não, pê acho que é o único que não está registrado. Eh, o único palavrão que eu acho um dos mais feios do mundo, digo morrendo de vergonha quando eu não tenho intimidade: caralho, altamente (sup.)
DOC. -  (sup.) Feia, a palavra é feia, né? (risos)
LOC. -  (sup.) É, é nojenta, né? Você ainda falar, pô, cacete, piroca, vai lá, mas caralho, isso, isso é uma afronta! (risos) Aliás tem uma piadinha por sinal (inint.) tem um sujeito que é muito envergonhado, que foi na, no médico porque estava com uma doença venérea. O cara tinha um, um pé de mesa, entendeu, enorme, mas chegou muito envergonhado no médico, abriu a braguilha, botou aquela vastidão em cima da mesa do médico e disse envergonhado: doutor, eu queria que o senhor tratasse aqui do meu piu-piu. O médico: um momentinho aí. Chamou a enfermeira: enfermeira quer trazer água e sal, por favor. A enfermeira trouxe água e sal, ele começou a borrifar o órgão do indivíduo: ô, doutor, o que que é isso? Primeiro vamos batizar isso aí de caralho, (riso) entendeu? Mas é um, é um palavr~ao feio mas tinha que estar registrado, tá? Por exemplo, agora na parte do, do ato sexual, trepar está registrado como ato sexual. Ora você pega uma tradução de Henry Miller, "Trópico de Capricórnio", você pega o Marquês de Sade, "Sodoma e Gomorra", que aliás é uma das traduções mais porcas que eu já vi do Marquês de Sade, acho muito chocante, não é como, por exemplo, você já leu Marquês de Sade?
DOC. -  Já.
LOC. -  Já leu "Justine ou as desgraças da virtude"? Ele é dito, ele, ele é, ele é super angustiante sem usar palavras violentas, tá? Você já leu os "Cento e ... "Cento e ... "Cento e vinte ou Cento e oitenta dias em Sodoma"?
DOC. -  Não.
LOC. -  Você fica com vontade de vomitar. Porque além dele descrever as piores taras, além de descrever, ele usa as piores palavras. Então, diz que o sujeito queria foder a garotinha de treze, de, de dez anos, esse verbo não está no dicionário.
DOC. -  Não está no dicionário não?
LOC. -  Hum, hum. Posso apanhar depois que terminar a gravação o Aurélio Buarque de Holanda e mostrar pra você, nem fo, nem fu, que até hoje eu não sei qual é o certo.
DOC. -  É o 'o' que a gente não abre.
LOC. -  Certo, mas eu não sei por que você, você não diz butar, você diz botar e é 'o' fechado também.
DOC. -  Mas você diz jugando, né?
LOC. -  Realmente.
DOC. -  Não é? De jogar, isso varia muito.
LOC. -  É, realmente (inint.)
DOC. -  Há pessoas que dizem sufá em vez de sofá, né? Depende (inint.)
LOC. -  Hum. É realmente, você não pode ... Bom, deve ser com <is>o<fs> mesmo, mas não existe. O que mais? Tem palavrão aí paca. Não me lembro se, acho que está, mas não me lembro se sacanear, por exemplo, está no dicionário, sacanagem eu sei que está. Sacanagem, inclusive no norte não é palavrão.
DOC. -  Não, não é!
LOC. -  Entendeu? E no sul também não é.
DOC. -  Acho que já está perdendo o significado porque já está tão corrente.
LOC. -  É. Então, você é obrigado a ... Por exemplo, quando eu quero, eu, eu, eu invés de soltar um, um puta-que-o-pariu, lá na sala, já ficou difundido, e a menina, aquela menina já aceita tranqüilamente bem o putis (sic), entendeu, ou um putis-grila (sic), invés dessas alocuções, eh, essas alocuções não, essas inter... essas interjeições compostas, que eu não sei nem o nome exato em português, você diz: puxa vida!, qual o nome, qu... qual a classificação gramatical: puxa vida!
DOC. -  Isso é uma locução, né?
LOC. -  Ah (inint.) não sei se existe nome, essa é uma locução interjectiva, tá? Em puta-merda não é uma locução interjeitiva usando essa definição, a gente diz tuta-méia, aproveita o Pasquim, né?
DOC. -  Existe um livro, né, do Guimarães Rosa chamado "Tutaméia".
LOC. -  Existe?
DOC. -  O nome do livro, não é?
LOC. -  Não sabia não. Então, ih, está ficando uma parada, televisão, programa Flávio Cavalcanti, aquele, aquele babaca, me inventa agora um júri pra julgar o programa e é justamente sobre essa palavra. Me chega Germana Delamare, já ouviu falar dessa mulher?
DOC. -  Já (inint.)
LOC. -  Primeiro surge o (inint.) falando: pois é, o programa demora muito, cinco horas enche o saco e tal, e p^o e toda hora pô e pô. Televisão! Aí chega a Germana: olha, Flávio, eu não vou ficar discutindo esse negócio do programa demorar cinco horas, isso pra mim é uma tremenda babaquice! (risos) Eu tomei um choque quando eu olhei pra televisão, né, eu tomei um choque! Eu já tinha ouvido filho da mãe na televisão, já tinha ouvido no rádio, no jogo de futebol: porque que o juiz te expulsou? Ah, porque eu chamei ele de filho da puta! Eu ouvi isso no rádio, entendeu? Mas você chegar na televisão, a mulher chegar de cara limpa, sentar, com o jogador de futebol estava com, com a cabeça quente, e jogar uma babaquice em cima da televisão? Bom, a produção cortou na hora: Flávio tem um comercial aí agora! (risos) E o Flávio colocou a mão na cara e tudo mais, entendeu, é uma palavra que não está no dicionário também. E tem aí aos borbotões palavras que já entraram, tá, oquei, e que, e que ainda não, já, desde que eu me entendo por gente já existia e não foram oficializada, tá? Fora determinadas gírias também, né?
DOC. -  Agora, só pra gente encerrar que já está bastante na hora que eu dou aula inclusive, você podia, eh, encerrando essa, toda uma discussão do Rio relacionado com o assunto.
LOC. -  Descrição do?
DOC. -  Do Rio, da cidade!
LOC. -  Ah, do Rio! Bem, como eu disse o (sup.)
DOC. -  (sup.) Ela não é uma cidade como Belém, né, pela sua descrição de Belém, ela não é (sup.)
LOC. -  (sup.) É. O Rio de Janeiro continua lindo, né? Poxa, deixa eu ver, em termos de terreno ou em termos gerais?
DOC. -  Não, não gerais porque você já, já contou, né? Você já mostrou (inint.)
LOC. -  Bom, o Rio é uma cidade à beira-mar, eh, cheia de vales, Tijuca é quase um vale, tá? A, a, a zona sul me lembra muito o, lembra muito o Chile, né, porque o Chile é montanha e a praia, né? O cara vem de esqui e se mergulha, mergulha, mergulha dentro dágua, entendeu? Aquelas montainhas devagar. Poxa, é uma cidade que assim, por exemplo, em termos de terreno, você faz aqui, por exemplo, em termos de fertilidade, terreno fértil, você não tem quase mais agricultura aqui dentro, né, nessa zona rural. Poxa, além de, da cidade já ser, da nossa cidade-estado já ser pequena, a zona, a zona rural é bem pequena também. A produção agrícola do Rio de Janeiro é zero. Eu, honestamente, não tenho condições de dizer se sob esse aspecto o solo é o melhor ou não é, nunca li a respeito. Eh, riquezas naturais? Acho que o Rio quase não tem, certo? Eu pelo menos não me lembro de uma, não me lembro de nenhuma. Você pode considerar, por exemplo, nós temos algumas pedreiras, se você considerar pedra como uma riqueza natural, mas de outro tipo não, honestamente, assim pelo menos à primeira mão não me lembro de nada que o Rio possa oferecer. Eh, como solo, boa parte dele tem essa parte à beira-mar é o solo arenoso, pra construção é uma parada, eh, que mais? É uma cidade que tanto, tanto tem-se partes altas como partes baixas, você tem bairros lá no alto, você tem uma Santa Teresa, quase uma cidadezinha lá no alto, você tem a parte de Alto da Boa Vista que daqui a pouco vai estar bem mais, bem mais densamente povoada por causa do, do avanço da Barra, da região toda ali da, daquela serra da Tijuca, oquei, pega São Conrado, essas coisas todas, o que mais? Em resumo, sabe o que que eu acho, acho que você falar de terreno em relação ao Rio de Janeiro tem muito pouco a falar porque ele, ele, ele é muito pequeno como um todo pra você julgar alguma coisa. Ah, o Rio de Janeiro, poxa, na realidade o que é, fo... foi a capital federal, é uma cidade-estado acho isso diz tudo. É uma cidade, eu acho muito, muito esquisito você julgar o solo de uma cidade, você diz das riquezas naturais, naturalmente, que se encontram no solo ou sob o solo, tipo de estados como de países, você não diz a cidade produz isso, você pode ter dentro de um estado, São Paulo é pro... é uma cidade, é um estado produtor de café. A região de São Paulo que mais produz café é essa, onde estão as cidades tais e quais, oquei?
DOC. -  Hum. (interrupção)