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PROJETO NURC-RJ

DIÁLOGOS ENTRE INFORMANTE E DOCUMENTADOR (DID):

Tema: "Tempo cronológico"
Inquérito 0044
Locutor 0053 - Sexo masculino, 64 anos de idade, pais não-cariocas, economista. Zona residencial: Suburbana
Data do registro: 04 de abril de 1972
Duração: 38 minutos


Som Clique aqui e ouça a narração do texto


LOC. -  ... por ocasião, eh, do meu curso médico, os psicopatas ganharem de nós naqueles testes, enquanto eles levavam tempo geralmente normal, nós levávamos mais tempo do que eles para resolvermos aqueles testes que eles forneciam para os psicopatas. E eles é que são os anormais.
DOC. -  Isso acontece. Eh, como o senhor organiza o seu horário durante o dia, durante a semana?
LOC. -  Bom, eu sou autodidata e aprendi por mim mesmo a dividir o meu tempo. Quer dizer que a minha vida cronológica, eu a considero em compartimentos estanques e costumo dividi-la para a minha jornada diária da seguinte maneira: eu levanto cerca de seis horas da manhã, preparo-me fazendo a toalete, e o meu 'breakfast` é muito razoável, só o faço bem quando estou viajando. Aí sim, aí eu procuro viver a vida que me dão, mas aqui no Rio, eu apenas tomo um cafezinho, um pedacinho de pão e geralmente mais nada. Quando saio da minha casa, mais ou menos sete horas, eu fecho a porta e, se houve qualquer coisa de aborrecimento, esqueço, porque o que eu vou enfrentar nessa seqüência da minha vida, a pessoa que estiver comigo não tem nada com o que houve, quando eu ainda estava na minha residência. Então geralmente ando de táxi, ou com pessoas da família ou geralmente com motoristas. Eu prefiro o táxi porque eu não fico na dependência dos parentes, não sou assim uma espécie de carona. Na minha casa todos têm automóvel, menos eu. Minha filha tem automóvel, meu filho tem automóvel, meu genro tem automóvel, para não citar os outros parentes. Eu não tenho. Por quê? Por causa do estacionamento. O ministério da Justiça não me dá estacionamento, como não dá aos nossos médicos aqui, de maneira que isso já é um problema. Bom, então pra evitar essa segunda seqüência ou um aborrecimento qualquer, eu também, quando fecho a porta do táxi e que desejo ao motorista um bom dia, eu vou enfrentar a terceira parte que é aqui no ministério da Justiça, e os nossos funcionários e os nossos doentes não têm culpa de eu ter brigado, por hipótese, na primeira fase, na segunda fase, então eu vou enfrentar aqui a vida. Eu faço tempo integral. Eu entro aqui no ministério geralmente oito horas da manhã e saio geralmente dezessete horas. Ontem por exemplo foi um dia extraordinário, que eu não poderia dar a entrevista, porque eu atendi, sem marcar alguns, trinta e cinco pessoas aqui principalmente ... Eu não sou psiquiatra não e aprecio a psiquiatria, acho uma coisa muito bonita, mas eu não poderia ser médico de psicopatas. Estou levando uma vida há cerca de cinco meses, porque o nosso psiquiatra, doutor A., está de férias ou, melhor dizendo, licença especial, então estou enfrentando esse problema da psiquiatria que é tristíssimo, mas tristíssimo na verdadeira acepção da palavra. Bom, cinco horas saio daqui e vou para o meu consultório, que considero talvez a, a parte melhor da minha vida diária, onde eu enfrento os meus clientes particulares, aqueles que me pagam para que eu possa pagar o consultório, o aluguel do consultório. Fico lá de, rua Santa Luzia, fico de dezessete às dezenove horas. Saio, depois dessas duas horas, mais ou menos satisfeito, porque enfrento aqueles meus clientes e troco muitas impressões com eles, cousa que eu nem sempre posso fazer aqui e então depois vou enfrentar a condução de volta pra casa. Se há possibilidade e facilidade na hora do 'rush` de pegar um táxi, vou de táxi. Se não, vou pegar o ônibus. Tenho várias linhas que me levam até a minha casa no Méier e procuro geralmente ir sentado. E depois chego à minha casa satisfeito de ter passado um dia geralmente agradável. Sou muito bem humorado, eu sou um sujeito extrovertido por excelência e procuro viver sempre com um sorriso nos lábios e assim eu vou levando essa minha vida. E o final é um jantar, que é a minha melhor refeição, porque como em casa, e cerca de meia-noite durmo, às vezes enfrentando um programa de televisão. Atualmente a minha situação está um pouco aborrecida, porque infelizmente o meu pai, um homem extraordinário e ainda lúcido por excelência, aos noventa e três anos, está às portas da morte. Eis o meu tempo cronológico, conforme me pediram para que o citasse.
DOC. -  Ah, qual é a atitude em relação aos seus clientes, quando eles não cumprem a medicação dada pelo senhor? Qual é a sua atitude?
LOC. -  Bom, aí o azar é dele, né? Pelo seguinte, porque nós somos procurados por ele, nós diagnosticamos, nós prognosticamos, nós damos a terapêutica. Agora essa questão aí nós podemos dividi-la em duas partes: o cliente que tem poder aquisitivo e o cliente que não tem poder aquisitivo, porque infelizmente a vida está muito difícil e os remédios estão muito caros. Ele podendo comprar e o remédio estando bem adequado para o mal que ele apresenta e que nós achamos que ele deve ser tratado daquela maneira, ele será feliz, ficará curado e, em outra hipótese, ele não poderá ficar curado e eu aí não posso fazer nada.
DOC. -  O senhor sente que o seu trabalho constitui uma rotina?
LOC. -  Ah, naturalmente, é uma rotina.
DOC. -  Poderia defini-la melhor?
LOC. -  Ué, eu há pouco expliquei, mais ou menos, pelo tempo cronológico, o que eu fazia, não é? E de maneira que eu acho que, já a minha vida já é uma rotina, completamente, né, quer dizer, eu vivo o, o dia a dia, viu, e portanto isso é a verdadeira rotina.
DOC. -  (inint.) o senhor costuma seguir o seu horário à risca?
LOC. -  Muitos me consideram certinho.
DOC. -  Certinho como?
LOC. -  Procurando cumprir as minhas obrigações dentro dos horários preestabelecidos. Eu me recordo de uma vez eu ser saudado por ocasião de um aniversário e o orador disse: estamos diante do nosso caxias. Eu imediatamente protestei. Eu digo: se cumprir obrigação, isto é, entrar à hora, sair à hora, atender aos seus deveres é caxiísmo (sic), eu então sou caxias. Agora, se eu ficar mais tempo, se eu der demais, se eu puxar, se eu fizer isso, se eu fizer aquilo, além do preestabelecido, eu não considero isso caxias.
DOC. -  E de seus subordinados o senhor também exige essa mesma atitude?
LOC. -  Aí há uma questão de compreensão. O subordinado é igual a nós. Se eu, por exemplo, como chefe, uma hipótese, chego à hora, saio à hora, o subordinado também deve chegar à hora e sair à hora.
DOC. -  Eh, por exemplo o senhor tem dificuldade de acordar sozinho?
LOC. -  Absolutamente. E posso até citar mais: a minha neta de dezesseis anos, uma garota de, de muita personalidade, aliás eu noutro dia estava lendo alguma coisa sobre psicologia e em que dizia que personalidade pura não quer dizer nada, mas eu vou ficar só nessa personalidade. Ela se levanta quinze para as seis. Ela está no colégio Metropolitano e geralmente quem a chama sou eu.
DOC. -  Ho... hoje em dia reclama-se muito da falta de tempo. O que que o senhor acha a respeito disso?
LOC. -  Depende. Eu, eu ontem saí de casa eram sete e dez. Tive sorte, peguei logo um táxi e entrei aqui no ministério dez para as oito. Eu hoje saí de casa sete horas, peguei táxi lá no Méier às sete e trinta e cinco, cheguei aqui ao ministério eram oito e meia. Quer dizer, entre dez para as oito e oito e meia o que eu não faria? Quer dizer, na situação atual, e não se pode modificar, isso é que é a verdade, aqui na, no Rio de Janeiro, por que não dizer no mundo inteiro, porque eu já andei em várias partes do mundo, há sempre esse problema, o tempo tem que ser bem explorado para que nós possamos obter dele muita cousa.
DOC. -  O senhor sente muita diferença dos jovens de hoje em dia com os da sua época?
LOC. -  Ó, L., eu fui professor do colégio São Bento trinta e dois anos. Estudei no colégio São Bento. Eu fui jovem, quando jovem nós vivemos aquele tempo da nossa juventude. Depois fui professor. Nunca saí de sala, enquanto eu vi reitores do colégio São Bento saírem de sala por não agüentarem os alunos, eu nunca saí porque os meus alunos não me permitissem dar aula. Enfrentei o magistério de mil novecentos e trinta a mil novecentos e sessenta e dois no colégio São Bento, portanto esse ano de mil novecentos e sessenta e dois representa mais ou menos a época atual da juventude de cabelo grande, de barba grande, das moças de calças e por aí afora, e eu dei aula perfeitamente e, como acabei de dizer, nunca saí de aula por causa de aluno.
DOC. -  O senhor, que já, inclusive já fez tantas viagens, acha que falta mais alguma a fa... a ser feita?
LOC. -  Bom, viajar, a gente tem sempre que viajar e está sempre faltando uma para fazer. Eu pretendo, se Deus quiser, não sei se esse ano, ir aos Estados Unidos. É a viagem dos meus sonhos. Entretanto posso lhe dizer que a viagem à Europa, onde passei sessenta dias, representou para mim uma das maiores cousas da minha vida e, se puder, se Deus me ajudar, eu irei novamente à Europa, aí escolhendo certos países, né? Agora posso dizer que vi muita cousa bonita, muita cousa extraordinária, mas Paris é uma fábula.
DOC. -  (inint./ruído)
LOC. -  (ruído/inint.) o interessante pra nós, sob o ponto de vista econômico, é não mantermos um intervalo entre os clientes, n~ao é, entra um, sai outro, entra um, sai outro, o que, num dia financeiramente é ótimo, não é? Agora, e às vezes não. Às vezes é mais interessante que o cliente chegue com cinco, dez minutos (inint.) para que a gente possa botar tudo em dia, pensar um pouco, descansar, etc.
DOC. -  Quanto tempo, mais ou menos, deve durar uma consulta?
LOC. -  Aí depende (inint.) o cliente novo, aquele que vai pela primeira vez ao consultório, esse requer mais tempo.
DOC. -  Outra coisa também: o senhor costuma atender o chamado durante a noite?
LOC. -  Graças a Deus, não.
DOC. -  Por quê?
LOC. -  Porque a minha clínica é feita mais em consultório. De maneira que eu atendo os meus clientes no consultório e os oriento para, no caso de haver qualquer cousa, a não ser um telefonema, eles podem resolver a sua situação.
DOC. -  Mil novecentos e setenta e dois o senhor sabe que é um ano diferente. Como o senhor se situaria nesse ano diferente (inint./sup.)
LOC. -  (sup.) Bom, diferente por quê? Só se é porque há uma comemoração aí do sesqüicentenário. Só se é por isso. Porque, até agora, mesmo na doença do meu pai, pra mim está sendo um, um ano mais ou menos rotineiro. Não estou vendo nada demais.
DOC. -  Cronologicamente?
LOC. -  E ... A não ser o caso que eu citei há pouco, sem gravação, de exumação da, do corpo da minha esposa e que eu não consegui vê-la sob a forma de esqueleto, porque ela ainda estava coberta de pele. Aí talvez seja diferente, né?
DOC. -  O senhor havia dito que inclusive tinha neto, certo?
LOC. -  Uma neta.
DOC. -  Uma neta?
LOC. -  V.M.
DOC. -  Quando ela faz anos?
LOC. -  A V.M. faz anos dia treze de novembro. Ela está atualmente com dezesseis anos. E no colégio Metropolitano, eles estão fazendo lá aquela parte técnica e a parte científica e ela es... está querendo ser médica e eu não sei se a aconselho bem, eu não desejaria que ela fosse médica. Não porque eu tenha tido algumas decepções, absolutamente. Mas eu acho que o médico é um indivíduo que nem sempre ele é bem compreendido. E por isso eu ... Ela, que é uma pianista, que já se exibiu até, poderia talvez levar a sua vida para esse lado, um lado mais bonito, um lado mais melodioso do que essa aridez que é a medicina.
DOC. -  Com relação ao ano, como é que o senhor o divide? Como o senhor dividiria o ano em grupos de meses?
LOC. -  Ah, isso é uma cousa difícil. Eu, eu divido o ano em doze meses, não é? Quanto às estações do ano, por exemplo, não há assim uma cousa, como parece já ter havido, né? Às vezes o verão é meio hibernal. Às vezes o inverno é, é meio quente, e por aí afora. Eu por exemplo quando cheguei à Europa, em julho, dia cinco de julho, dia seis de julho, melhor dizendo, em pleno verão europeu, eu voltei ao hotel (pigarro) pra me agasalhar e notei que os portugueses também se agasalhavam. E era o pleno verão europeu. Esse ano por exemplo existe, se não me engano, uma tal de minicopa e ... O que mais que eu poderia dizer do ano? Não, não, essa parte, sinceramente, eu não entendi como dividir o ano. Não, não tenho assim uma idéia de como fazê-la (sup.)
DOC. -  (sup.) O senhor acha que no fim de semana o senhor tem uma vida diferente (inint.) que a sua rotina durante a semana é diferente da do fim de semana em termos assim de hábito, de hora de acordar, etc.?
LOC. -  O, o indivíduo, se levar uma vida higiênica, ele deve ter o fim de semana. Ele deve quebrar a rotina. Há um problema, e esse problema eu sentia quando professor. Eu por exemplo embocava segunda, terça, quarta, quinta e sexta. Depois descansava sábado e domingo. Quando eu começava segunda-feira, eu sentia uma certa dificuldade. O período de férias por exemplo julho, era um período mau e os professores me desculpem: é muito tempo, trinta dias. Vinha-se dando um determinado programa, organizando-se um roteiro para o estudo e aí, abruptamente, aquele mês de férias. O período de três meses, no fim do ano, a mesma cousa. Eu também acho uma cousa exagerada.
DOC. -  Não existe mais (inint.)
LOC. -  Eu não, não tenho tomado parte nem tenho lido muito a respeito de reforma do ensino não, mas estou vendo e que me desculpem, que é uma balbúrdia muito grande nessa questão da reforma de ensino atual. Ainda ninguém entendeu como pô-la em execução.
DOC. -  Quando nós estávamos nos referindo assim a sua vida, ao que o senhor faz, deixa de fazer, como o senhor vê essa vida noturna, o senhor participa?
LOC. -  Sempre participei. E gosto. Agora com certo comedimento, né? O indivíduo que trabalha e ainda mais que acorda cedo, como é o meu caso, ele por exemplo não pode ter sempre noitadas. Ele então prefere deixar essa vida noturna para sábado e domingo.
DOC. -  E durante o fim de semana o senhor acorda à mesma hora?
LOC. -  E eu, eu posso até dizer mais. Parece uma covardia. Sabem que eu, ao sábado e ao domingo, quando poderia e deveria acordar mais tarde, eu acordo mais cedo?
DOC. -  Por quê?
LOC. -  Não sei explicar.
DOC. -  Uma coisa que eu estou observando, o senhor usa relógio. Bonito, seu relógio. O funcionamento dele é bom?
LOC. -  Este meu é perfeito. E no momento, já de alguns anos pra cá, graça a uma parenta paulista, não sou mais escravo do relógio. Eu era escravo do relógio. A cada instante eu estava ... E ela, em São Vicente, perto de Santos, ela disse assim: por que que você está vendo o relógio a toda hora? Eu disse assim: é por causa do ônibus, que está chegando. Mas a que hora vai chegar o ônibus? Seis horas da tarde. Eram duas horas. Eu já estava estudando os minutos que faltavam de duas para as seis, pra pegar o ônibus. Hoje não procuro ser escravo do relógio (sup.)
DOC. -  (sup.) O senhor sempre teve esse relógio?
LOC. -  Não, esse relógio eu devo tê-lo há cerca de uns seis meses.
DOC. -  Ele nunca quebrou não?
LOC. -  Ainda não. A única coisa que aconteceu foi que a correia é que, apesar de ser estrangeira, já arrebentou. (riso)
DOC. -  E por que que o senhor trocou esse, o outro por esse?
LOC. -  Bom, porque esse é mais bonitinho do que o Omega que eu tenho, que funciona perfeitamente.
DOC. -  Mas nunca quebrou?
LOC. -  Nunca quebrei relógio (sup.)
DOC. -  (sup.) Eu tenho um relógio Omega (inint.) está quebrado (sup.)
LOC. -  (sup.) Nunca quebrei um relógio.
DOC. -  Nunca?
LOC. -  Nunca.
DOC. -  (inint./sup.) nada, nunca (sup./inint.)
LOC. -  (sup.) Eu tenho um pa... eu tenho uma passagem, eh, eu tenho uma passagem muito interessante sobre relógio na minha viagem que eu fiz à Europa, né? Eu não sei se alguém aqui já foi. Mas em Lisboa, existe lá a Feira da Ladra, onde se vende tudo. E lá, um camarada lá começou atrás de mim, pra comprar o relógio, que era tantos dólares, não sei o quê e eu acabei oferecendo parece que vinte escudos, que não eram quase nada, e ele me vendeu um relógio que dizia ele ser automático e Omega. O mostruário, na verdade, dizia lá automático e Omega. Então coloquei-o no pulso. Olhava o relógio e notava que os ponteiros não ... (riso) Depois eu descobri que ele tinha o mostrador Omega e que ele não tinha nada de automático.
DOC. -  O senhor pode descrever um relógio? O senhor já viu um relógio por dentro?
LOC. -  Bom, eu já vi, já estive em várias relojoarias. Eu gosto muito de ver aqueles técnicos botarem aquelas lentes lá no olho e olharem lá, aquela parte lá. É o cabelo, é o balanço, é isso, é aquilo. Mas foi coisa que nunca me interessou (inint.)
DOC. -  E o seu, o senhor já observou?
LOC. -  Esse nunca foi aberto.
DOC. -  Por quê?
LOC. -  Bom, porque até agora está funcionando bem.
DOC. -  Ah, o senhor nunca teve curiosidade?
LOC. -  Mas pra quê?
DOC. -  O senhor ainda tem um, um outro relógio antigo? O senhor só teve esses dois relógios?
LOC. -  Ah, ó, aí é dificil dizer, né? O, eh, acho que o primeiro relógio que eu tive eu ganhei numa rifa no colégio São Bento. Eu era um pobretão e custava a rifa dez tostões. Eram vinte e cinco bichos. E o rapaz, um, hoje general, R., me ofereceu lá o relógio pra entrar na rifa e eu não, eu não tinha o dinheiro e ... Mas acabei arranjando lá os dez tostões e entrei na rifa. E pra pouca sorte do R., ele vendeu parece que uma doze rifas. E ele todo prosa: essas treze, entre os números estará o meu, e eu vou ficar com o relógio. Mas infelizmente ou felizmente pra mim, eu tirei o número sete, que era carneiro, e fiquei com o relógio dele. Acho que foi o primeiro relógio que eu tive. Mas eu tive muito relógio. Eu devo ter lá em casa uns quatro, por aí.
DOC. -  (inint./sup.)
LOC. -  (sup.) Agora eu não, não estou sabendo por que a insistência em perguntarem sobre o relógio, o relógio (inint.) só porque estamos falando em cronos, cronos, tempo?
DOC. -  É porque o relógio marca o tempo, não é? Com relação (inint./sup.)
DOC. -  (inint./sup.)
LOC. -  (sup.) Vejo muito. Vejo muito pelo seguinte: porque hoje em dia pra a gente sair à noite, meu filho, é preciso quase que pedir o exército, porque é um tal de assalto e essa coisa toda, porque aí, eu também poderia ter respondido aqui à L., por que que às vezes eu não saio à noite. Eu só sairei à noite se me derem garantia. Senão eu não saio.
DOC. -  Como assim? Não entendi.
LOC. -  Ô, minha filha, os ladrões estão ali a cada passo. Ainda lá em casa um dia desses, se não fosse a presença de espírito da nossa empregada, eu não sei o que que haveria. Era um sábado, ela, empregada nova, estava sozinha lá em casa. Eu tenho duas entradas. Apertaram a campainha (inint.) dos fundos, ela foi ver e um havia ... Eram dois homens e uma mulher. Disse ela que parece que a mulher usava peruca, e procurando a dona S., que é a minha filha, procurando o seu L., que é o meu genro, e dizendo que eles iam ornamentar a nossa casa. Ela, com uma presença de espírito, não abriu, fechou-se, e eles bateram, bateram, não foram atendidos e foram embora. Se, durante o dia, fazem isso, e à noite? À noite é muito perigoso.
DOC. -  O senhor não acha que assim, como o senhor pensa dessa forma, se fosse assim ninguém sairia?
LOC. -  Bom, minha filha, cada qual enfrenta o seu destino.
DOC. -  O senhor nunca sai à noite (inint./sup.)
LOC. -  (sup.) Ah, saio. Volto às vezes três horas da manhã. Essa cousa toda e tal (inint.)
DOC. -  Onde o senhor costuma ir?
LOC. -  Ah, minha filha!
DOC. -  Aí é uma pergunta indiscreta! (risos/inint./sup.)
LOC. -  (sup.) A in... a indiscrição aí é uma coisa interessante. Ah, minha filha por exemplo eu gosto muito de fes... gosto muito de festa. Principalmente festa em casa de família. Gosto muito. Bom, e eu gosto muito também de freqüentar boates, viu? Eu tenho colegas de turma que são aliás admiráveis, formando uma das turmas mais interessantes que há em matéria de, de turma de profissão liberal, que é de doutorando novecentos e trinta. Essa turma promove festa a cada instante, né? De maneira que nós ... Às vezes a festa é à noite ou algum jantar. Todo o segundo sábado de cada mês temos o nosso almoço. O próximo será na churrascaria de Botafogo, dia oito.
DOC. -  Agora o senhor havia dito que o senhor gosta de freqüentar boate. O senhor não, não se acha um pouquinho velho para boate (inint./sup.)
LOC. -  (sup.) Minha filha, existe, existe, eu vou aproveitar a palavra, existem duas palavras que nem sempre correspondem: a idade biológica e a idade cronológica. Eu, apesar de ter sessenta e quatro anos de idade biologicamente, eu cronologicamente, não me cito nesta faixa etária. Eu me considero muito menos velho.
DOC. -  E quanto ao ie-ie-ie, o senhor também dança?
LOC. -  Quando a minha neta não me impede, danço ie-ie-ie.
DOC. -  Sozinho ou acompanhado (inint.)
LOC. -  Bom, aí a gente toca a música conforme ela é tocada, né? Se é pra gente dançar ... Ainda agora numa excursãozinha que eu fiz se... ao nordeste, há um mês e pouco atrás, em Poções, na Bahia, nós pernoitamos, inauguramos uma boatezinha, e eu dancei não só o samba, que é uma música maravilhosa, e, eu tive a oportunidade de também de dançar ie-ie-ie e ganhei uma caixa de fósforos muito bonitinha como lembrança de ser o melhor dançarino de ie-ie-ie.
DOC. -  Na Bahia ou no nordeste?
LOC. -  Na Bahia.
DOC. -  Em que lugar da Bahia?
LOC. -  Poções.
DOC. -  Poções! Ah ...
LOC. -  Poções.
DOC. -  O senhor sempre teve esse hábito de dançar?
LOC. -  Sempre gostei. E se me permitissem eu contaria a vergonha por que passei: eu era menino, era mais ou menos bestinha, garoto, garoto do São Bento. Eu já namoricava e tal e eu fui a uma casa no Engenho Novo, onde havia uma moça chamada E. Muito bonitinha, a irmã dela, J., tocava piano, e eu estava sentado lá na sala, esperando que minha mãe resolvesse um problema lá, quando a E. e uma prima dela vieram à sala e a J. foi pro piano. Então a E. virou-se pra mim e disse assim: você dança? Eu preferia que o chão se abrisse e eu desaparecesse. Eu não sabia dançar. Desse dia em diante eu comecei a praticar, praticar e me tornei um bom dançarino. E provei isso na Argentina dançando o tango, e o argentino me perguntava como é que eu dançava tango tão bem.
DOC. -  (inint.)
LOC. -  Desculpem a falsa modéstia.
DOC. -  Nada (inint.)
DOC. -  O senhor disse que nós estamos encabulados com o relógio, né, o que é isso diferente aqui no seu relógio?
LOC. -  Bom, isso não é diferente. Isso, vocês todas que têm relógio em geral vocês têm, dado por uma porção de firmas, aqui o calendário.
DOC. -  Ah, eu não tenho.
LOC. -  E é o calendário correspondente a abril. O doutor D., que é o nosso anfitrião, que nós estamos na sala dele, no gabinete maravilhoso de oftalmologia, ele, de vez em quando, nos oferecia, graças à siderúrgica, esses calendários mensais.
DOC. -  O seu relógio funciona sem precisar o senhor fazer nada?
LOC. -  Não, esse meu não é automático. Esse tem que dar corda. O meu au... relógio automático está de posse do meu filho.
DOC. -  O senhor deu pra ele?
LOC. -  Não, ele se apropriou. (risos)
DOC. -  O senhor tem quatro em casa?
LOC. -  Relógios? Tenho, tenho lá. Mas eu só uso esse e o Omega, mais nada. O relógio da, da Feira da Ladra, a filha de um colega meu, eu estava no automóvel dela, num Dodge Dart, e ela disse: eu estou sem o relógio! Eu ofereci o relógio a ela e até hoje não me devolveu.
DOC. -  Então além disso tudo o senhor também é um sujeito bondoso, né?
LOC. -  Bom, isso eu sempre sou, né? Doutor D. está aí, não me deixa mentir. Eu sou bo... bom e bondoso.
DOC. -  Bom e bondoso! (risos) Em relação ao consultório, o que que há de diferente entre os clientes daqui e os clientes lá?
LOC. -  Completa... completamente diferente. Doutor D. está aí e pode dizer.
DOC. -  Em que sentido?
LOC. -  Não se compara um cliente de uma clínica particular com um cliente de ambulatório, de hospital, lá o que seja.
DOC. -  Aqui por exemplo existe uma hora certa de atendimento?
LOC. -  Ah, não. Nós temos (sup.)
DOC. -  (sup.) Como é que é o funcionamento? (sup.)
LOC. -  (sup.) Nós temos o nosso horário ininterrupto de oito da manhã às dezessete e trinta. Temos médico a todas as horas.
DOC. -  Certo. E no consultório (sup.)
LOC. -  (sup.) E várias clínicas (sup.)
DOC. -  (sup.) Como é que o senhor funciona?
LOC. -  Bom, eu lá (sup.)
DOC. -  (sup.) Acompanhado ou sozinho?
LOC. -  Não, eu funciono sozinho.
DOC. -  Sim (sup.)
LOC. -  (sup.) Sozinho, porque, trabalhando (sup.)
DOC. -  (sup.) E os clientes, pra irem lá, qual é, o que que eles têm que fazer? (sup.)
LOC. -  (sup.) Bom, bom, geralmente eles vão por indicação ou então, clientes antigos, não é, quer dizer, aliás é indicação, dizem onde nós estamos e eles nos procuram (sup.)
DOC. -  (sup.) Certo, mas em termos assim de ... Eles têm que ir a uma hora determinada, têm que marcar antes, como é que funciona? (sup.)
LOC. -  (sup.) Bom, para o dentista, talvez para o doutor D., que faz oftalmologia, a hora marcada é a coisa melhor. Mas eu não faço isso não. Eu fico às vezes com pena do cliente. Ele chega, né, o da hora marcada não chegou, ele vai ficar esperando? É muito pau isso, né?
DOC. -  Qual é mesmo a sua especialidade?
LOC. -  Eu faço, no meu consultório eu faço urologia. Aqui no ministério eu faço tudo: clínica médica em geral.
DOC. -  Bem, o senhor havia dito que era um sujeito que gostava das coisas certas. Nós já estamos tanto tempo aqui, o senhor poderia me dizer as horas?
LOC. -  Mas menina, o negócio de tempo cronológico é, é, é danado. Se eu não soubesse o que significava cronologia, heim? Que cronos significa tempo, eu estava enfiado aqui. Bom, pelo meu Pressa, relógio suíço, marca aqui quinze horas e quarenta e oito minutos.
DOC. -  Tem certeza?
LOC. -  Se o meu relógio está certo (sup.)
DOC. -  (sup.) Tem algum outro compromisso agora?
LOC. -  Não, o meu compromisso, como eu sou um sujeito certo, eu já o des... (sup.)
DOC. -  (sup.) Certo significa o quê?
LOC. -  Certo, eu já o desfiz. Eu disse desde ontem que hoje, entre quinze e dezesseis horas, eu estaria dentro do gabinete de oftalmologia atendendo a cinco moças, um rapaz, agora apareceu outro, dois, e viria a professora, e que o doutor D. iria assistir a entrevista. Eis a razão por que eu digo que era certo. Senão já teriam batido aí várias vezes, pedindo pra assinar uma coisa, assinar outra, o nosso (inint.) aborrecido.
DOC. -  (inint.) como o senhor define esse certo? De um tempo a outro, como o senhor definiria esse certo, pro senhor? O senhor (inint.) certo por quê?
LOC. -  Eu andar sempre dentro daquilo que eu planejo e preconizo. Dentro da minha certeza.
DOC. -  Sim, outro sentido.
LOC. -  Não vejo outro sentido.
DOC. -  Em relação a tempo, a pessoa que é certa, que (inint./sup.)
LOC. -  (sup.) Bom, pois não. Aí, como ainda agora se falou, eu disse que a questão do tempo, ainda mais na época atual, não podemos afirmar que seja assim uma cousa tão certa, porque não pode ... É a condução que é difícil, né? É o atendimento, ali, médico, é difícil (inint.) mas agora, eu me considero um indivíduo certo. Dentro dessas minhas incertezas eu sou um sujeito certo.
DOC. -  Se o senhor marca um horário com uma pessoa e cumpre esse horário, o senhor passa a ser o quê?
LOC. -  Cumpridor do meu dever.
DOC. -  Em relação ao tempo?
LOC. -  Mesmo em relação ao tempo. Olha aqui, bom, eu não quero fazer o meu cliente esperar.
DOC. -  Não está fugindo nem uma palavra (inint.)
LOC. -  Não sei. Só se vocês têm alguma palavra. Aí eu ignoro qual seja.
DOC. -  Os clientes se incomodam de esperar no consultório do médico?
LOC. -  Bom, o do... doutor D. talvez possa confirmar. O cliente, quando está na sala de espera, esperando a vez, ele é, apesar de nós chamarmos o cliente de paciente, ele é impaciente. Depois que ele entra, ele se esquece que há um segundo a entrar e então o tempo pra ele se prolonga. E o outro então é que se torna impaciente.
DOC. -  Nós não somos clientes, mas mesmo assim nós temos um tempo, certo?
LOC. -  Bom, se vocês marcaram um tempo de uma hora, se eu passar dessa hora, eu então é que eu serei um indivíduo que não sou certo. É o tal programa da televisão: de vez em quando o programa desaparece. Por quê? Porque eles têm o tal tempo. A gente vê pelo próprio satélite. O satélite é lançado ao ar às dez horas, quarenta e um minutos e trinta segundos. Eu digo: puxa, mas porque que não é quarenta e dois segundos, porque que não é quarenta e cinco? Não, quarenta e um segundos. Aí está solto. Zero! E o foguete sobe. Portanto, é a cousa certa, no tempo certo.
DOC. -  (inint.) bom, ficamos gratos ao senhor.
LOC. -  Não, eu é que agradeço a lembrança do D., me colocando em contato com esse grupo de jovens, que faz uma cousa que eu nem sempre estou de acordo. Não vou explicar o motivo. É o tal negócio da pesquisa. Todo professor hoje tem mania da pesquisa. Eu acho que às vezes o professor não quer é dar aula, sabe? Então obriga o aluno a fazer isso, fazer aquilo, a fazer aquilo outro, tudo o mais, e se aproveita daquilo que o aluno faz, e então diz que passou o tempo. Aí ele não está certo. Esse certo aí é na, naquela questão da L. do certo, do certo, do certo, do certo. E eu então fico satisfeito. Se agradei, eu fico satisfeito.
DOC. -  Plenamente.
LOC. -  Se não agradei, é porque eu não tenho capacidade para ser o entrevistado. Mas acredito que não os tenha decepcionado.
DOC. -  (inint.) de jeito nenhum. De forma nenhuma.
LOC. -  E se precisarem de mim novamente estarei à disposição.
DOC. -  Obrigado (sup.)
LOC. -  (sup.) Obrigado (sup.).