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PROJETO NURC-RJ

DIÁLOGOS ENTRE INFORMANTE E DOCUMENTADOR (DID):

Tema: "A cidade e o comércio"
Inquérito 0039
Locutor 0048 - Sexo masculino, 35 anos de idade, pais cariocas, pesquisador em educação. Zona residencial: Sul, Norte e Suburbana
Data do registro: 29 de março de 1972
Duração: 39 minutos


Som Clique aqui e ouça a narração do texto


LOC. -  Bom, eh, nós sabemos que um dos componentes mais expressivos de uma grande cidade é o comércio, o comércio em si e como ele se apresenta, a sua vitalidade, as suas relações com o mundo exterior. Então para o Rio de Janeiro um dos aspectos assim mais expressivos e que chama atenção de quem chega sobretudo dos centros pequenos é essa, eh, essa pulsação de vida que tem e da qual o comércio em grande parte é responsável. Quem vai num sábado de manhã por exemplo a Copacabana, eh, fica realmente abismado diante daquele mundo de pessoas se entrechocando nas ruas e tentando nesse dia mais do que em outros, mas de qualquer forma em toda semana, eh, adquirir bens de consumo, não somente em Copacabana mas também em centros comerciais de bairros e mesmo de subúrbios distantes. Então o comércio é um traço típico, um traço característico de uma grande cidade sobretudo quando essa grande cidade é o Rio de Janeiro, onde há uma concentração, eh, espacial condicionada pela, pelo relevo, pela proximidade do mar e isso então, eh, implica em que as pessoas estão muito próximas uma das outras e favorece assim essa concentração muito grande, não em termos residenciais apenas mas também em termos de prestação de serviços. Então essa é uma das características, né, típicas do Rio de Janeiro como cidade, o comércio. O comércio não só hoje mas mesmo em tempos idos serviu para dar uma fisionomia típica do Rio de Janeiro e também, eh, mostrar através dele certos traços globais da nossa cultura. Por exemplo, durante muito tempo a influência francesa na nossa cultura, na nossa civilização, era testemunhada através de certas lojas, de certos artigos de consumo que a classe alta adquiria da França, desde perfumes até livros e, e peças de vestuário. Uma influência que depois aos poucos foi se transferindo para outras, outros pontos de abastecimento externo, sobretudo, eh, bens, eh, de consumo, eh, oriundos da América do Norte. Então isso serviu também para mostrar dentro de um processo geral de urbanização e, e massificação, eh, a criação de certos tipos de comércio, eh, que se sucederam àqueles tipos de comércio ambulante que nós vemos nas figuras de Debret. Hoje esses tipos, eh, estão representados por alguns, eh, representantes, eh, alguns elementos bem típicos da paisagem carioca como por exemplo o camelô que é um comerciante marginal, no sentido de que não está registrado, mas que tem uma presença muito marcante na vida carioca. E igualmente mesmo no âmbito do comércio legal há uma porção de características específicas, uma delas é a regionalização desse comércio. Nós já sabemos que algumas ruas do Rio se notabilizaram por serem pontos de concentração de determinados comerciantes atacadistas como é o caso da rua do Acre, que concentra todo o pessoal voltado para, eh, negócios de cereais. Igualmente há outras ruas que se caracterizam por terem, como a rua Augusta em São Paulo, uma, um, uma, um toque de requinte de venda de bens de consumo que são geralmente usufruídos pelas classes mais altas ou então por aqueles que não pertencendo a elas mas que querem se identificar desse modo com elas. O comércio no Rio de Janeiro é responsável pelo, pela absorção de um grande número de mão-de obra, eh, no Rio de Janeiro muito mais que São Paulo tem um, um setor terciário da economia muito avantajado e pelo fato de haver um extraordinário número de pequenas casas comerciais, pequenas quanto ao capital, quanto ao número de empregados, entretanto, eh, é um número muito, muito grande, muito elevado e que permite assim uma absorção de empregados que dá ao setor terciário então a participação muito grande nessa área de comércio.
DOC. -  (inint.) poderia mesmo definir o que você está chamando de, eh, quais são as pessoas, como é que se chama normalmente essas pessoas que participam desse setor terciário?
LOC. -  O setor terciário abrange, eh, não somente o comércio mas também todos aqueles que se ocupam de profissões liberais, eh, os professores apesar de serem assalariados mas trabalham num, numa organização de prestação de serviços que é a escola. Então todas essas organizações como, eh, escolas, eh, que de certo modo (inint./ruído) né (inint.) todas as organizações comerciais mas também profissionais liberais se enquadram então no que a gente chama terciário, ou seja tudo aquilo que não é industria, tudo aquilo que não é agricultura ou pecuária (sup./inint.)
DOC. -  (sup.) E as pessoas que trabalham no comércio (inint.) como elas são chamadas de um modo geral (inint.)
LOC. -  As pessoas que trabalham no comércio, se elas são proprietárias são chamadas comerciantes, se são chama... se são empregadas são chamadas comerciárias. Não é essa distinção que você queria?
DOC. -  Sim, e, e dentro disso assim, dentro do setor de comerciários, você destacaria, você distinguiria, eh, tipos, tipo (inint.) ou pelo tamanho da, da empresa que trabalham (inint.)
LOC. -  Nós podemos estabelecer assim distinções quanto a, a, ao tamanho da organização, normalmente o comércio, eh, em supermercados por exemplo tem um tipo de organização empresarial que de certo modo atinge e distingue também os seus empregados, eh, e os torna assim muito diferentes daquele comerciário que trabalha em armazém de subúrbio, que anda de tamancos, que tem uma indumentária que não é uniforme, é a própria roupa que ele traz de casa, quer dizer que é um tipo de diferença que se estabelece pelo tamanho da organização. Mas a diferença que eu acho assim mais precisa mesmo do ponto de vista sociológico é com relação a, aos artigos vendidos e por conseguinte ao tipo de clientela que o comércio tem. Eh, são comerciários, são igualmente comerciários tanto o vendedor de secos e molhados num armazém de Coelho Neto como a moça que trabalha numa butique de Ipanema. Mas ela se sentiria ofendida se soubesse que ela está sendo nivelada ou identificada com esse caixeiro, com esse balconista, com esse homem, eh, rude e de hábitos assim não tão refinados que caracteriza o vendedor, eh, de estabelecimentos menores e de áreas mais pobres do Rio de Janeiro. Então essa me parece a distinção mais importante porque, eh, distingue um pouco a, as, eh, as, o tipo de comércio que existe aqui no Rio. Agora (sup.)
DOC. -  (sup.) Você falou na rua Augusta. Você sabe o tipo de coisas que se vende na rua Augusta?
LOC. -  Eu suponho, eu nunca fui à rua Augusta, mas eu suponho que, eh, lá se concentrou um, um conjunto de lojas que vendem artigos assim de preço mais alto e de qualidade supostamente superior, então seria uma, equivalente à rua do Ouvidor em tempos idos aqui no Rio de Janeiro, né?
DOC. -  E hoje (inint.) essa, a diferenciação, eh, por exemplo no comércio?
LOC. -  Essa diferenciação como? Tal como ocorreu lá, o zoneamento (sup.)
DOC. -  (sup./inint.) referencia à (inint.) atacadista da rua do Acre e em outras áreas.
LOC. -  Nas outras áreas eu acho que no Rio de Janeiro isso fica um pouco assim, eh, diluído, eh, porque ... Eu tenho a impressão de que por uma série de razões o, o espírito mais esportivo do carioca e talvez também certos esquemas de incentivo, como o, o crédito, eh, ao consumidor, isso tornou um pouco assim indistinta essa, esse zoneamento que, que eu exemplifiquei com o caso da rua Augusta de São Paulo. Então, eh, hoje em dia com facilidades de crédito, que afinal acabam sendo dificuldades, mas essas facilidades de crédito, os cartões, eh, de, que os bancos e agências financeiras apresentam é um meio de se ter poder aquisitivo, às vezes ele se arrisca a fazer compras que a rigor só poderiam ser feitas por quem tivesse um padrão de vida mais alto. Então o comércio de certo modo ele no seu afã de ampliar o seu volume de vendas ele cria certos mecanismos que acabam absorvendo um grande número de, de pessoas. É o, o que está acontecendo, o que vai acontecer nos próximos meses com a televisão a cores. Certamente muitas pessoas que não terão condições de adquirir um televisor a cores serão de tal modo bombardeadas pela propaganda e também principalmente nas classes mais baixas se sentirão tão, tão recompensadas e valorizadas e autovalorizadas em ter em casa o seu aparelho de televisão que possivelmente irão adquiri-lo. Isso me lembra algo que ocorria há, há uns vinte anos atrás quando eu era menino e eu notara que em certas casas de gente pobre no subúrbio onde eu morava era um ponto de honra ter a sua cristaleira. Na sala havia sempre uma cristaleira com os, os, os vidros pra mostrar os copos e os jarros que as pessoas tinham. Hoje as cristaleiras saíram de moda mas era um, um toque de distinção pessoal e hoje em dia isso ocorreu, ocorre com a televisão também, né (inint.) é aspecto que a gente tem que explicar em função do comércio, né, da organização do comércio, da projeção do comércio se estendendo até os lares e compelindo à compra de bens que não são imprescindíveis.
DOC. -  Por exemplo se você vai hoje a Copacabana que tipo de lojas você encontra em Copacabana e que artigos essas lojas vendem?
LOC. -  Copacabana apresenta uma variedade enorme de, de gêneros para venda sobretudo no setor de, de vestuário, de calçados, né, de artigos esportivos por causa da, da presença da praia, da própria vida esportiva que o carioca leva. Agora essa variedade naturalmente não atinge certos bens de consumo que não são, não são em geral usufruídos pelo carioca. Eu me lembro quando eu visitei quando eu era criança uma cidade de Minas Gerais, como ocorre em grande parte delas, uma loja (espirro) concentra, né, concentra a venda de todo, de todos os tipos diferentes de artigos, desde roupas, de peças para agricultura, né, e de certa maneira os supermercados hoje são uma forma atualizadas daquele tipo de loja que havia antigamente, né? Mas, eh, realmente o, a modernização do comércio no Rio levou a, a, a uma compartimentação desses, dessas, tipos de atividade, então departamentos, lojas-departamentos, como, como a loja Freitas e outras mais que vendem uma porção de coisas diferentes. Mas a norma geral é que as lojas se especializam ou, ou vendem roupas ou vendem artigos para presentes ou vendem artigos esportivos ou vendem calçados, mas há uma variedade realmente muito extensa, há livrarias também. Mas eu acho que cobre a maior parte do que se compra no Rio de Janeiro, né? É como se fosse uma cidade à parte. Não por outras características mas em termos de comércio, eh, Copacabana, a zona sul em geral é de certo modo autárcica, ela tem uma autonomia em relação a outros pontos. Normalmente, eh, tradicionalmente havia uma zona de comércio e uma zona residencial, mas em certas áreas muito densamente povoadas se torna compensador que elas possuam também uma área de comércio, então isso que ocorreu com Copacabana e com outros bairros do Rio mais densamente povoados, essa separação entre residência e comércio, como havia na Grécia antiga a ágora, né, a praça do comércio e as residências, isso não existe mais (inint.) estão mais ou menos superpostos, né?
DOC. -  Agora me diga uma coisa, em termos de cidade (inint.) cidade? (telefone)
LOC. -  O comércio (sup.)
DOC. -  (sup.) Sem ser o comércio, toda a (sup.)
LOC. -  (sup.) Não precisa atender não (sup.)
DOC. -  (sup.) Área em que a cidade está fundada?
LOC. -  Eu acho que o comércio tem implicações muito grandes para a cidade, para a locomoção das pessoas, para a escolha de residência, para, eh, a própria, o próprio projetamento do trânsito, eh, ele tem, além das conseqüências assim estruturais de, de aumento de renda, de circulação da riqueza, mas em termos de cotidiano, do dia-a-dia, isso provoca também uma série de conseqüências inclusive pra problemas de trânsito por exemplo, o estacionamento, né, tudo isso em termos de microrregião isso traz uma série de implicações, né?
DOC. -  Por exemplo (inint.) você compara uma cidade como é o Rio de Janeiro com uma cidade como é São Paulo, do ponto de vista da apresentação da cidade, da, do aspecto físico da cidade, qual é a diferença assim que você poderia estabelecer em termos dessa apresentação?
LOC. -  Entre essas duas cidades, Rio e São Paulo?
DOC. -  É, de comum, a base assim de que (inint.) que você considere Rio uma grande cidade, São Paulo, uma grande cidade (inint.) uma cidadezinha pequena do interior (inint.) numa cidade grande (inint.) em termos descritivos puros.
LOC. -  Mas isso abstraindo aí o problema do comércio ou considerando (sup./inint.)
DOC. -  (sup.) Considerando também o problema do comércio. Mas numa cidade grande você não vai encontrar apenas o comércio. Há uma série de condições necessárias à constituição da cidade mesmo. Quais são esses diversos elementos que constituem a cidade?
LOC. -  Bom, eu, eu acho que, eh, em São Paulo tem muito, muita coisa, tem muito mais coisas em comum do que coisas, eh, de diferenciação. Agora isso no tocante assim à, à organização do espaço, eh (sup.)
DOC. -  (sup.) Exatamente (sup./inint.)
LOC. -  (sup.) Certas características comuns de toda grande metrópole (sup.)
DOC. -  (sup.) Exato, é isso que eu queria que você descrevesse, mesmo no plano assim de descrição pura.
LOC. -  Ah, comparação entre Rio e São Paulo?
DOC. -  Comparação entre lugares, né, inclusive o que está me interessando é, por exemplo, que tipo de coisa existe no Rio para domínio do espaço em que se situa a cidade e possibilidade de vida das pessoas nessa cidade. Elas se servem de uma série de coisas além do comércio, né?
LOC. -  Sei. É. O comércio está muito ligado à própria história do Rio porque toda a cidade começou e se expandiu em função de uma zona portuária que foi depois se, se espalhando e gerando outras atividades subsidiárias. E a tal ponto ele se desenvolveu depois com funções político-administrativas de capital que o comércio passou a ser um, algo muito importante no Rio de Janeiro mas não passou a ser aquele elemento condicionante em toda vida carioca. Agora essa expansão do Rio de Janeiro, primeiro em função do comércio, sobretudo de um comércio de importação, né, por isso ele era todo canalizado assim radialmente para a zona portuária e esse, essa expansão depois passou a ter outros aspectos justapostos, como a indústria, sobretudo os serviços. E na distribuição espacial do Rio de Janeiro então é muito importante considerar primeiro o relevo, né? O, o Rio é uma cidade comprimida entre o mar e a montanha, então essa é uma diferença muito importante em relação a São Paulo, que São Paulo tem pequenas colinas mas de um modo geral ele pode se espalhar mais horizontalmente que o Rio. O Rio tem que mais ou menos crescer nesse sentido de tentáculos em direções diversas sempre, eh, nesses corredores ladeados entre a montanha e o mar. Agora o comércio nessa expansão é muito importante e também de certo modo condicionante de escolhas de residência. Aí nós temos, eh, que citar também o problema do transporte que aqui no Rio é muito difícil. Em geral em grandes metrópoles estrangeiras de outros países, eh, essa distinção entre zona de comércio e zona residencial permanece, apesar de toda modernidade dessas, desses núcleos urbanos justamente porque é uma rede de transportes que minimiza os problemas de ir à loja e voltar para casa. Mas aqui no Rio esse problema perdura e daí a, a opção que muita gente faz de permanecer numa zona congestionada como Copacabana mas que tem uma série de serviços comunitários, como o comércio muito próximo da residência, e com isso dá um índice maior de bem-estar, de conforto, de, de maior disponibilidade de tempo para o lazer. Agora o que eu acho importante também no Rio, o comércio, aí sim talvez seja uma distinção interessante com São Paulo, o comércio, eh, utiliza muito aqui no Rio como apelo publicitário o 'fair play' do carioca, utiliza muito essa disponibilidade que o carioca tem de, eh, gozar a vida, de, eh, sentir prazer na vida. Então grande parte do consumo do carioca, eh, compelido pelo comércio é no sentido de, de, de aproveitar os momentos de folga, de repouso. Então, eh, o comércio se serve muito disso até mesmo em coisas que não são assim necessariamente para o lazer, mas ele explora esse ângulo, essa psicologia do carioca. Naturalmente eu acho que às vezes há um certo exagero nessa regionalização de tipos, né, porque (sup.)
DOC. -  (sup.) Me diz uma coisa, essa cidade espremida entre o mar e a montanha que é o Rio de Janeiro influi no traçado da cidade?
LOC. -  Inclui?
DOC. -  Influi.
LOC. -  Ah, influi (sup.)
DOC. -  (sup.) No traçado (sup.)
LOC. -  (sup.) Influi completamente porque (sup.)
DOC. -  (sup.) Qual é o traçado característico do Rio?
LOC. -  O traçado característico do Rio é em termos assim, digamos, eh, é uma, uma cidade traçada ao longo, é u... uma longa, é um risco muito longo e curvo, ao passo que São Paulo é como que um, um, um círculo, entende? Dentro dele há aquela metrópole ao passo que o Rio é uma, é uma, é um ... Eu usei a expressão tentacular, quer dizer que são, são, são linhas direcionais que partem de um ponto original, né, e esses, essas linhas estão separadas umas das outras por acidentes de relevo por exemplo, eh, Laranjeiras, Laranjeiras é um vale, não é? Eh, do outro lado do morro está, eh, Botafogo que é outro vale, né? Eh, então, eh, cada bairro ou cada conjunto de bairros do Rio desenvolveu ao longo dessas linhas de penetração, são linhas radiais. É claro que com a engenharia estão se escavando túneis e criando então meios de ligação de um bairro a outro, mas (inint.) desenvolvimento do Rio foi então nesses termos assim, eh, de dispersão de núcleos de ocupação. Esses centros de ocupação seguiram para pontos diferentes e os vazios que existiam entre um e outro eram causados e são causados por acidentes de relevo ou então realmente por pontos não ocupados. Esse tipo de ocupação em termos de geografia humana eu chamaria como os, não saberia como chamar. Há, há um termo alemão que se, se usa, 'Strassendorf', para designar cidade que é, se desenvolve ao longo de um rio, ao longo de uma estrada principal. Aqui no Rio, eh, seria um, um tipo um pouco diferente, quer dizer, um tipo de desenvolvimento em, como teias de aranha, cada fio seguindo por um caminho diferente gradativamente distante um do outro (sup.)
DOC. -  (sup.) Essa idéia de teia de aranha, então a que você, a que corresponde na realidade essa teia de aranha?
LOC. -  Bom, você, você poderia pensar que em vista disso há um certo isolamento local, o carioca de um bairro em relação ao carioca de outro bairro. Não é essa a idéia que talvez você esteja pensando sobre ela (sup.)
DOC. -  (sup.) Sim, essa teia de aranha supõe uma série de vias e o entrelaçamento dessas vias (sup./inint.)
LOC. -  (sup.) Hum, hum. Bom, o, o, o ... Talvez o (sup.)
DOC. -  (sup.) E um ponto de convergência dessas vias (sup.)
LOC. -  (sup.) É. O denominador comum aí seria (sup.)
DOC. -  (sup.) Eu queria que você desse nome a essas coisas (inint.) você dar nome a essas coisas.
LOC. -  Sei. O, o, o, o comércio, a zona, zona central do comércio seria então o, o, o elemento de convergência, né, o ponto central da cidade em que o carioca de Piedade se encontra com o carioca de Ipanema, quer dizer que seria um, um ponto de encontro, de interpenetração, de convivências, de, de vivências cotidianas entre o carioca de diferentes pontos do Rio. O comércio serviria a isso e realmente, como a zona central do Rio é uma zona de serviços, como a zona bancária e também uma zona de comércio, ele desempenha esse papel de, eh, unir, de tornar próximos um do outro os cariocas de diferentes pontos, né? Isso de certo modo, eh, está sendo amenizado por causa dessa regionalização do comércio. Há certos bairros, como Madureira, que já têm um comércio bastante avantajado e inclusive estimula certos bairrismos de, de, de afirmação local, de que eles têm um comércio muito bom, que nem precisam ir à cidade. E então isso ... Poderia parecer que com isso esses contatos, essa interpenetração, esse entendimento mútuo de cariocas de diferentes pontos fica diminuído, mas não me parece que isso ocorra porque também para o lazer, também para ir à praia e para ir às diversões os cariocas da zona norte vão à zona sul. Então há uma interpenetração que nesse ponto de vista de linguagem por exemplo, embora muitos digam que o, o carioca de um subúrbio distantes se comporta diferente do carioca de Ipanema, eu acredito que isso seja, seja falso, porque quando se fala do carioca de Ipanema em geral se pensa naquele tipo boêmio, que na verdade é apenas um dos tipos de Ipanema. Na verdade há uma população familiar de Ipanema que também vê as novelas de televisão, tem mesmos padrões e valores de classe média que a família que mora em Honório Gurgel. Quer dizer que eu acho que essas distinções setoriais e regionais dentro do Rio são muito mais ilusórias do que reais. Então um certo padrão de valores e mesmo certos procedimentos de linguagem, de maneira de, de falar que são, eh, usuais pra todo o Rio de Janeiro. Agora voltando ao comércio, ele eu acho que ele é realmente o, um elemento aglutinador, do, do, da população do Rio, né?
DOC. -  (inint.) o comércio, o comércio mais, de todo dia, você compra suas coisas normalmente, você faz compras?
LOC. -  Às vezes eu acompanho, eh, acompanho a mulher pra fazer compras em supermercados mas não é uma atividade de que eu goste muito porque isso, eh, implica em (riso) entrar em lugares muito congestionados, onde as pessoas se acotovelam umas às outras, não é uma atividade que me agrade muito.
DOC. -  As coisas pessoais você nunca sai para comprar (inint./sup.)
LOC. -  (sup.) As coisas pessoais no... normalmente eu saio pra comprar roupas e livros, né, são as coisas que eu faço assim em termos pessoais mesmo, geralmente a atividade de aquisição é sempre delegada à, à esposa, né?
DOC. -  E sua mulher o que que ela faz?
LOC. -  Profissionalmente?
DOC. -  Não, em termos de, de compras (sup.)
LOC. -  (sup.) De comércio? (sup.)
DOC. -  (sup.) De comércio.
LOC. -  Bem, ela gosta muito de, eh, além das compras obrigatórias de, de, eh, subsistência, eh, gêneros alimentícios, ela gosta muito de, eh, visitar butiques, quase sempre não compra mas que gosta sempre de saber preços e mesmo quando não vai com o propósito de adquirir ela gosta de pechinchar, de, que é um hábito também me parece bem carioca. Aliás uma instituição bem característica do carioca que não falei na área de comércio é a feira livre, né? A feira livre há mais ou menos uns quinze anos desde que eu leio jornal que se fala que vão acabar com as feiras livres, fazem sempre referência no jornal às feiras do Cairo dizendo que as ruas ficam sujas, atrapalham o tráfego, mas, eh, os feirantes retrucam dizendo que isso é o poder econômico das, das, dos supermercados que quer acabar com eles, né, e que eles são, eh, trabalhadores autônomos, né, então é o poder do forte contra o fraco. O fato é que eles não parecem ser tão fracos assim porque as feiras livres continuam. E isso então cria não só problemas assim comunitários, como eu falei, de trânsito, de limpeza urbana, mas também, eh, cria toda uma geração de tipos, inclusive permite, eh, a menores e a maiores subempregados encontrarem fontes de renda com transportes das bagagens pro, pra residência das, das donas de casa que vão à feira e não têm como transportar o material, não é? E cria também esses tipos como, eh, os vendedores ambulantes, os, os camelôs que estão presentes na feira também e o próprio feirante que tem todo um jargão especial, não é, e sempre quando termina a feira ele fica preocupado em, em não ficar com artigos encalhados então faz uma, um, um preço mais barato. Então cria aquele tipo de dona de casa chamada xepeira, que é a que só vai no final da feira, não é, inclusive é um aspecto assim que eu já notei que é de distinção social também. Há, há donas de casa que se jactam de ir à feira cedo, então isso às vezes é um elemento que caracteriza a pessoa que tem dinheiro, vai à feira cedo, ao passo que a outra que vai meio-dia já algumas pessoas começam a, a, a inferir daí que ela está sem dinheiro, pelo menos é avarenta, porque vai no final da feira quando os preços são mais baratos. Então, eh, a feira-livre também é um, um centro de comércio típico do Rio de Janeiro mais do que em outras cidades. Agora a mulher, eh, em geral eu acho que a mulher carioca é muito mais, eh, voltada para o comércio, é muito mais seduzida para o comércio do que o homem.
DOC. -  Por que (inint.) sua mulher gosta muito de ver as butiques, olhar os preços, pechinchar (inint) há certas épocas do ano que as lojas também, como as feiras livres, apresentam os produtos mais baratos, ela é atraída também? Por exemplo em março e abril é uma época do ano em que o comércio (sup.)
LOC. -  (sup.) É. São as, as épocas de liqüidação. Também é, é uma coisa típica (sup.)
DOC. -  (sup.) O que você acha? (sup.)
LOC. -  (sup.) Aqui no Rio de Janeiro aqueles aglomerados na porta da loja. A loja abre às nove então às sete da manhã já tem uma multidão de mulheres do lado de fora, é preciso chamar guarda pra manter a ordem, né? Normalmente aí também, eh, prepondera o elemento feminino talvez pelo próprio fato do homem estar trabalhando, não dispor de tempo pra isso. Mas, eh, você perguntou o que que eu achava em que termos de, em termos de promoção (sup.)
DOC. -  (sup.) É. Se funciona realmente, se os preços são mais baratos (inint.)
LOC. -  Pelo que eu tenho sabido, não. Parece que é mais um expediente publicitário. Às vezes eles dispõem de artigos encalhados e muitas vezes fazem uma remarcação para mais e depois, eh, rabiscam no cartão dando a ilusão de que o preço diminuiu. Às vezes diminui muito pouco, né? Já ocorreu mesmo com a minha mulher que ela adquirisse artigos nessas condições e depois verificasse que em outros pontos do Rio aquilo era mais barato. Ah, e um aspecto também muito interessante que é, eh, o, o lado do luxo, né, a etiqueta, a valorização que se dá à etiqueta. Comprar numa determinada loja, eh, tem uma conotação, eh, muito específica. Então por exemplo a rua da Alfândega, né, eh, já me ocorreu ter uma gravata que onde eu trabalhei acharam muito bonita e perguntaram se era francesa, se era Pierre Cardin e eu com muita franqueza disse que não, que eu tinha comprado na rua da Alfândega. Então vi um ar de decepção, né, (riso) nas mulheres que estavam me rodeando, achando que eu, eu ... Com isso eu senti assim que elas desvalorizaram a gravata, quer dizer, que o, o próprio cri... o critério de julgamento estético ficaria condicionado à, à fonte onde a pessoa adquiriu. Então a admiração que elas tinham pela gravata decresceu porque eu a tinha adquirido na rua da Alfândega e de um fabricante brasileiro, não é? Quer dizer que o comércio também condiciona as mentes das pessoas no sentido de, de, de, de, eh, reorientarem seus padrões de valores, de julgamentos, de padrões estéticos.
DOC. -  Mas (inint.) uma coisa. Você falou que sua mulher (inint.) motorista.
LOC. -  Motorista.
DOC. -  Então coloca aqui qual é o problema que ela tem com o carro, como é que a coisa funciona.
LOC. -  Bom, ela sempre desejou, mesmo antes que eu tivesse carro, ter uma atividade que fosse mais rentável que o magistério. E como ela teve amigas que também se dedicam a esse transporte de crianças ela achou que seria uma coisa muito proveitosa porque ela não fica ocupada o dia todo somente pela manhã, ao meio-dia e no final da tarde e exerceria também o, a direção do carro que ela gosta muito de dirigir. De minha parte eu fiquei preocupado porque, eh, tem sempre o problema de segurança com o filho dos outros, mas ela se sente assim plenamente ajustada a esse tipo de trabalho.
DOC. -  Mas quais são os problemas que ela encontra nesse tipo de trabalho?
LOC. -  Bom, os problemas maiores é que (sup.)
DOC. -  (sup./inint.) as crianças (sup.)
LOC. -  (sup.) Eu vou falar nas crianças que elas são (sup.)
DOC. -  (sup./inint.) da estrutura da cidade.
LOC. -  Bom, o problema maior é do trânsito que muitas vezes ela chega em casa assim muito irritada por causa dos problemas de congestionamento que, que ocorreram durante o trajeto da, da escola para a residência das crianças. O problema de trânsito é o maior. Mas também o problema do, que não é só no caso dela mas de todos motoristas, o problema do pedestre que é geralmente muito indisciplinado e o próprio problema do, de outros competidores no volante que também (ruído) não respeitam as regras de trânsito e isso tudo gera nela assim uma preocupação, uma tensão muito grande quando ela está ao volante, né? Além do problema das crianças que estão sempre gritando, brigando umas com as outras, sujando o carro, são problemas que ela enfrenta nesse dia-a-dia dela como motorista, né?
DOC. -  E aqueles problemas que você falou de estacionamento (inint.)
LOC. -  (pigarro) Bom, esse problema de estacionamento ela enfrenta sobretudo ... Os problemas de estacionamento são maiores do que os problemas de percurso porque ... Outra coisa curiosa, nós aqui no Rio nos habituamos sempre a seguir pelos caminhos, eh, que todo mundo segue, muitas vezes deixando de usar atalhos, usar, eh, outros caminhos que às vezes são tão curtos ou talvez são mais longos mas mais rápidos de percorrer. É o caso por exemplo do, do acesso entre Laranjeiras e Botafogo. Ninguém usa o morro, ninguém usa aquela via de acesso porque muitas vezes desconhece ou receia ir para um local ermo, né? Então o problema de percurso ela sempre encontra um jeito de contornar essas vias de, de acesso mais congestionadas, agora o problema de trânsito realmente ela não tem como fugir a ele porque, eh, ela vai para locais pegar crianças, entregar crianças, que são locais de fato de estacionamento difícil, né (inint.)
DOC. -  Não, não (interrupção).