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PROJETO NURC-RJ

Tema: "A cidade e o comércio"

Inquérito 0255

Locutor 306
Sexo masculino, 64 anos de idade, pais cariocas
Profissão: engenheiro
Zona residencial: Sul

Data do registro: 19 de outubro de 1974

Duração: 42 minutos

 

Som Clique aqui e ouça a narração do texto


D
 (inint.) pelo Rio de Janeiro, né?
L
 O Rio de Janeiro evidentemente, eh, eh, o Rio de Janeiro aliás eu moro no Rio de Janeiro há, bom, desde que eu nasci, né, há sessenta e quatro anos com poucos espaços que eu estive fora, né, e mudou terrivelmente o Rio de Janeiro, mudou de um modo antipático, se bem que seja muito mais importante uma cidade grande que uma cidade pequena, sob todos os pontos de vista, inclusive sob o ponto de vista, eh, comercial e industrial, etc. etc. No meu ramo, por exemplo, que é tijolo, se o Rio de Janeiro continuasse a ser o que era, (riso) eu não, não sei como é que eu ia tomar o cafezinho da manhã (riso) não ia vender coisa nenhuma (sup.)
D
 (sup.) Por quê? (sup.)
L
 (sup.) Porque é uma cidade em que não se constrói, que se constrói pouco, né? Agora, com a evolução da, da, com o aumento (sup.)
D
 (sup.) Mas como é que era o Rio, o senhor lembra, isso que o senhor está dizendo (sup./inint.)
L
 (sup.) O Rio era uma cidade muito bucólica, muito tranqüila, muito simpática. A gente, eh, não havia uma necessidade de ex... exploração como existe hoje. Por exemplo, eu tinha rodas de amigos (ruídos) e que de noite, num café, sentávamos numa mesa e ficávamos conversando até às três, quatro horas da manhâ na frente de um cafezinho. Hoje não tem mais nem mesa nos cafés pra gente sentar e conversar, a gente chega lá, senta numa banqueta ali, toma um, um negócio e já tem outro esperando atrás, né? Quer dizer, não, não dá mais pra essa, pra essa, esse relacionamento com os amigos, com os, eh, essa troca de idéias, esse ... Hoje em dia a gente pouco (inint.) eh, tem condições de, enfim, de manter uma conversa, uma, com amigos, né, porque não tem onde, só em casa, e assim mesmo em casa quase ninguém vai em casa de ninguém quase, porque todo mundo tem muito o que fazer, quer dizer. Agora quanto ao resto da cidade, por exemplo, tráfego, tráfego não preciso dizer o que é, todo mundo sabe, mas piora por causa da má, da má orientação dos meus colegas engenheiros de tráfego, colegas engenheiros, né, são completamente desprovidos de capacidade. Eles, eh, fazem coisas, eh, como por exemplo dividir a avenida Brasil em, em quatro pistas. Não tem opção (ruídos), se há um acidente numa das pistas, aquela pista fica completamente entupida enquanto que a outra permite uma circulação fácil, né? Eh, pra vir de Copacabana pra a minha casa tem que ir até a rua Farani, não posso dobrar na primeira rua, então gasto gasolina, eh, obstruo o tráfego pra lá, depois obstruo o tráfego pra cá, perco tempo e fico de mau humor. (riso) Quer dizer, o fato de aumentar, aumentar a cidade tem a vantagem de transformar uma cidade relativamente pequena numa cidade grande, mas é uma, eh, não sei se tem mais inconvenientes do que vantagens, sob o lado humano tem desvantagens, sob o lado econômico naturalmente que tem muitas vantagens, né, porque, eh, uma, uma loja que, que fornece a sete milhões de habitantes, um conjunto de lojas, tem muito mais possibilidades de, de vender do que uma que fornece a uns oitocentos mil habitantes como tinha antigamente no Rio, né, é verdade também que menos lojas, mas, eh ...
D
 E menos variedade também de lojas ou, ou maior?
L
 Bom, isso aí já é outro ponto. Tinha mais variedade porque naturalmente havia mais importação (sup.)
D
 (sup.) Hum (sup.)
L
 (sup.) Então a gente comprava queijo francês, uísque escocês, eh, eh, conservas, eh, dinamarquesas, o diabo, compreende, que hoje em dia já é mais difícil. Mas não é por causa da cidade ser grande ou pequena é por causa da situação, do, do, da orientação econômica do país, né, que não permite a importação dessas, eh, desses, guloseimas, né, e, e depois tem outra coisa também em matéria de roupa. O sujeito comprava uma gravata inglesa (inint.) casemira. O quê, chapéu? Ah, mas agora não se usa mais chapéu (riso/inint.) o chapéu 'gelot' do ... O quê? Bom, mas isso também homem não usava luva. (riso) Mas as mulheres compravam coisas, enfim, o que aparecia em Paris um mês depois estava aqui no mercado, né?
D
 E havia assim nesse mercado setores especializados ou era como é hoje, por exemplo com ...
L
 Não, eh, havia, eh, a casa de, de, de... Bom, casa de, de, de comidas, né, tinham, eh, tinha, eh, a casa Colombo, o Portuguese Show, que tinha tudo que a gente podia imaginar como coisas, eh, importadas e o que havia de melhor, ahn? No, no setor de roupa, tinham casas que importavam toda roupa estrangeira, eh, tanto pra homem como pra mulher, né? Eh, tinham umas francesas que vinham todos os meses e que traziam uma quantidade enorme de, de, de, de roupas dos, dos grandes costureiros, né, da Lavin, naquela época era Lavin, não era, não tinha os Dior de hoje, né? (risos) E, e, e a sociedade toda se vestia com roupa francesa, as, as, as senhoras da sociedade. E também não era tão caro assim n~ao, custava talvez um pouquinho mais caro do que ... E também no Rio de Janeiro não tinha nada que prestasse, segundo as senhoras daquela época diziam, né? Agora (sup.)
D
 (sup.) Então deve haver uma diferença enorme pra hoje, né?
L
 Hum?
D
 Uma diferença enorme pra hoje.
L
 Era, mas era uma cidade muito, muito, como direi, muito, eh, de interior, muito primitiva, simples, dava a impressão de uma vila, uma vilazinha do interior. Todo mundo conhecia todo mundo, todo mundo ... A gente ia em qualquer lugar e encontrava no mínimo dez, quinze, vinte pessoas conhecidas. Na segunda-feira era a noite, era a estréia das fitas de cinema. Então tinha o cinema Palácio, o cinema Palácio, eh, todo, a gente ia lá, to... todo mundo conhecido estava lá, a gente até reparava: não sei por que que fulana ou beltrano não veio hoje, deve ter acontecido alguma coisa, porque não está hoje aqui (inint.) só tinha gente conhecida. E, e depois a gente ia pro Lamas de noite, o famoso Lamas, também só tinha gente conhecida, tinha um ou outro desconhecido lá, né? Eh, comia um bife muito gostoso, aliás, bife delicioso. E hoje a gente vai nos lugares e não encontra ninguém, hoje eu saio, talvez ... É verdade que eu conheço muito menos gente porque a maior parte das pessoas que eu conhecia já morreram, né? (riso) É verdade. Eu, eu, eu hoje não tenho mais amigo nenhum antigo, só tenho amigo novo, o único amigo antigo que eu tenho é um primo-irmão meu, o resto tudo morreu. Então eu,eu a gente vai nos lugares, mas eu tenho a impressão que todo mundo é assim, tem tanta gente, é uma massa de, humana tão grande, né, que, eh, não tem, não é fácil as pessoas se encontrarem, as pessoas que se conhecem se encontrarem. Agora, apesar disso tudo, ainda é melhor do que Brasília.
D
 Pois é, isso que eu ia falar (sup.)
L
 (sup.) Pois é (sup.)
D
 (sup.) Brasília foi uma cidade assim planejada, eh, no seu aspecto (sup.)
L
 (sup.) Mal planejada (sup.)
D
 (sup.) Urbanístico, mas no aspecto (sup.)
L
 (sup.) Mal planejada, porque o, o Lúcio Costa, se bem que seja um grande arquiteto, talvez o maior que o Brasil tenha, ele é mau urbanista. E o Niemeyer caindo de quatro não levanta. O Niemeyer é um indivíduo que tem a coragem de dizer que as casas são projetadas de fora pra dentro, faz a fachada, depois empurra lá dentro o que precisa botar, que fique bem ou mal, não interessa, o que interessa é que a fachada fique de acordo com o gosto dele. Agora o planejamento de Brasília é um planejamento, eh, errado, completamente errado. No, no, numa cidade em que as distâncias são imensas, em que tudo é superdimensionado, eh, eh, por exemplo, as, as áreas de iluminação, a área de iluminação ideal de uma sala é mais ou menos vinte por cento da área quadrada dela. Em Brasília diz: bom, se é vinte por cento, é o mínimo, vamos botar noventa e oito por cento. Então fica uma sala clara demais. Eh, eh, cada habitante deve ter aproximadamente, não tenho certeza exatamente do dado, mas digamos oito metros quadrados por habitante. Então Brasília diz: vamos botar oitenta metros quadrados por habitante. Então a gente não se vê, não tem, as companhias de transporte não têm como, eh, viver em boas condições, porque o, pega um passageiro aqui, pega outro a um quilômetro de distância. As lojas de, de, as pequenas lojas que eles fizeram nas superquadras também não têm como viver, compreende, porque não tem comprador, os compradores ficam muito longe, só o pessoal daquela superquadra é que pode comprar ali. A gente passa em Barra do Piraí, se a gente chega em Barra do Piraí ou qualquer outra cidadezinha pequena, sem conhecer ninguém, no dia seguinte já sabe quem é a, a amante do padre, já sabe quem é o, (riso) com quem que o prefeito transa, sabe tudo. E em Brasília a gente passa um ano e não diz, não tem uma pessoa pra dizer bom-dia, só o porteiro do hotel, porque é tudo muito disperso, muito, muito grande, não, não é aconchegante.
D
 Sim, mas as idéias assim básicas, justamente uma das razões por que, do planejamento de Brasília era exatamente fazer uma cidade humana, né?
L
 Não, mas foi o contrário, foi exatamente o contrário.
D
 Mas a idéia inicial era essa (sup.)
L
 (sup.) O negócio, o negócio, o negócio é tão ruim, mas tão ruim que o Lúcio Costa foi lá agora, chamaram ele para verificar se havia um jeito de arrumar aquilo (ruído de telefone) e ele, eh, e ele ficou tão desgostoso que jurou que nunca mais voltaria lá, sabia disso?
D
 É.
L
 Disse: vou embora de Brasília e nunca mais volto aqui. Quer desligar enquanto ela está falando no telefone?
D
 Não, pode falar, não tem problema não.
L
 O Lúcio Costa disse que nunca mais voltaria a Brasília.
D
 Mas o senhor sabe por quê?
L
 Ahn, por quê?
D
 Hum.
L
 Eh, porque ele não conseguiu, ele achou que, eu não sei se foi o erro dele ou se foi erro de quem construiu ou se foi, eh, foi desgosto ou se as, as sugestões que ele deu pra melhorar não foram aceitas, o fato é que era necessário modificar aquilo porque não era possível viver lá, viver lá normalmente, então ele se desanimou e não volta mais lá, né?
D
 E assim em termos de planejamento? No Brasil, de um modo geral, as cidades assim mais tradicionais são cidades que surgiram nos primeiros séculos e tiveram um, um desenvolvimento praticamente natural e não planejado. Cidades mais recentes (sup.)
L
 Bom, evidentemente que uma cidade (sup.)
D
 (sup.) São planejadas (sup.)
L
 (sup.) Nessas condições são cidades que não podem crescer muito e que têm que ser preservadas. Então não, não, não podem crescer porque não têm condições de abrigar uma população muito grande e, eh, não pode se transformar isso numa coisa mais, eh, porque tem o, a beleza histórica, o, o, o tem a tradição, tem o, tem isso tudo que tem que ser preservado, né? Ouro Preto, por exemplo, Ouro Preto não cabe mais nem uma mosca lá, a não ser fora de Ouro Preto, né, porque, eh, o núcleo ... E depois o seguinte, essas cidades assim são cidades, eh, que aquele, aquele pedaço da cidade tem que ser preservado, mas ao lado ... Agora Ouro Preto, o caso que eu falei de Ouro Preto, não tem grande interesse em aumentar mais porque não tem nada que atraia a população pra lá, acabou o ouro, só turismo, né? Agora a Bahia, por exemplo, eles conservaram aquela parte tradicional da Bahia e estão se expandindo pra fora de Salvador, né? Salvador hoje em dia tem uma, um, eu não conheço Salvador, mas pelo que eu sei, tem bairros sensacionais fora de Salvador, né, mas Salvador tem toda a riqueza da Bahia pra, pra ser explo... pra, pra, pra ser capital, pra, pra, pra ser explorada, né?
D
 Agora, num caso como o do Rio, por exemplo essa expansão da cidade se fez às custas de prejudicar não só esse aspecto (inint.) que o senhor já se referiu, humano, mas muitos outros, inclusive com uma ausência de, o que nós chamaríamos serviços básicos ou de uma infra-estrutura, eh, de serviços públicos.
L
 Bom, a pior coisa do Rio é o tráfego. A pior coisa é o tráfego. E estão procurando arrumar, procurando arrumar como, como é possível, né? Eu tenho a impressão de que quando começar a funcionar o metrô vai melhorar muito o tráfego, se bem que eu não faria o metrô como eles estão fazendo. O metrô todo mundo diz: bom, metrô é um sub... é um negócio subterrâneo então tem que ser subterrâneo. Eu não faria absoluta... com esses morros todos que a gente tem aqui vazios eu faria tudo na encosta do morro, porque o metrô não é feito pra me levar daqui à praia de Botafogo, o metrô é feito pra sair daqui e ir pra Tijuca, pra Copacabana ou pra cidade, não é? Então, daqui até a estação do metrô eu tomaria uma condução qualquer local.
D
 O senhor depredaria o aspecto vegetal dos morros?
L
 Não, depredaria coisa nenhuma (inint.) de, de o metrô pela, pela beirada do morro depredaria coisa nenhuma. E depois, quer depredação maior do que favela, (riso) não é? Agora as favelas existem também por quê? Porque não tem transporte. Como é que um sujeito que trabalha, digamos, numa, que é faxineiro de um prédio, ou, ou, ou o garçom de um, de um botequim ou coisa que o valha, como é que ele viria para o trabalho dele, sem transporte, saindo de, sei lá, de Cascadura ou de Bangu ou de Campo Grande, pra vir pra cá? A favela é um problema exclusivamente de transporte.
D
 Mas aí recai também sobre aquele aglomerado de gente, todos, toda uma série de outros problemas de, desde problemas assim sanitários até problemas ...
L
 Até que aqui no Rio de Janeiro não tem muitos problemas sanitários não.
D
 É?
L
 É a impressão que eu tenho, não sei, eu não sou sanitarista nem me ocupo muito dessas coisas. Mas a impressão que eu tenho é que o problema sanitário aqui no Rio não tem muito não. Bom, as favelas, excluídas as favelas, eh, eu passei uma ou duas vezes por um favela, é uma coisa, é uma pocilga aquilo, uhn, mas se eliminassem as favelas como estão pretendendo eliminar, como estão trabalhando nesse sentido, né, eu tenho a, a impressão que acabam com qualquer problema sanitário. Que é que você (inint.)
D
 É, e em termos assim por exemplo de área suburbana do Rio ... E o Leblon. É, tipo de, de serviços (sup./inint.) aqui é muito deficiente. Tudo aqui em Botafogo é gravíssimo (inint./sup.)
L
 (sup.) Não, não é tão deficiente assim não. Na Barra não tem, a Barra é, é uma, é uma, eh, uma obra que estão fazendo sem base, porque não tem água, o, o, esgoto é fossa, né, quer dizer, se tivessem feito lá ... Mas isso vem com o tempo, quando tiver uma ... Também tem o lado econômico da coisa, o sujeito não vai poder fa... fazer uma, uma rede de esgoto pra meia dúzia de casas, quando estiver, eh, cheia de, a cidade cheia de, de, de, enfim, de habitantes lá aquela, aquela região, aí provavelmente eles farão rede de esgoto boa, aí levarão água boa, porque parece que a água é de, não sei como é, qual é a situação da Barra não, não estou muito a par.
D
 Aqui o senhor tem algum desses problemas, nessa área?
L
 Não.
D
 Não.
L
 Não.
D
 Nunca teve?
L
 Eh, de vez em quando falta um pouquinho dágua, né? Mas quando falta água aqui, a água é função de chuva, quando há uma seca muito violenta, naturalmente que, que não tem mesmo, né (inint.)
D
 Agora o senhor diz que o senhor morou aqui antes da construção do prédio.
L
 Hum, hum.
D
 Como é que era essa rua?
L
 Era igualzinha a que é, sem prédio nenhum naturalmente, de mesma largura, passava bonde e, passava um carro por minuto, digamos. (riso) Agora passam sessenta carros por segundo. (riso)
D
 E não tem mais bonde, né? (riso)
L
 E não tem mais bonde. (riso)
D
 Mas e o transporte assim básico, por exemplo pra trabalho, geralmente as pe... hoje está muito localizado fora do centro, loja, comércio (sup./inint.)
L
 (sup.) Bom, tem muitos, muitos escritórios (sup.)
D
 (sup.) Escritórios (sup.)
L
 (sup.) A quantidade de escri... de firmas grandes ... Era aquele prédio (sup.)
D
 (sup.) Mas naquela época era assim também? (sup.)
L
 (sup.) Não, naquela época não, era tudo na cidade. Tinham lojas naturalmente. Mas, eh, pra comprar, por exemplo, um, um par de sapatos tinha que ir à cidade, comprar um lenço tinha que ir, porque tinha um armarinho na esquina, mas o armarinho, eh, vendia, você pedia um lenço, ele dava um pano de prato. (riso) Comprar um lenço direito, comprar um par de sapatos, comprar uma gravata, uma camisa, roupa, eh, fosse lá o que fosse ... Tanto que naquela época as senhoras tinham como programa ir à cidade: ei, onde você vai? Eu vou à cidade fazer compras. (riso)
D
 E quais eram as lojas assim que elas freqüentavam?
L
 Ah, não sei, mas tinha uma porção de, de lojas. Uma das maiores era aquela, ali perto da igreja de São Francisco, eh, não me lembro, tinha Fazendas Pretas, e, e na avenida Rio Branco que, que vendia fazendas muito boas. Tinha o Parque Royal, é essa do largo de São Francisco, eh, Parque Royal. Era uma, uma loja grande de, ela vendia roupas, vendia, sei lá, meia, vendia vestidos, vendia, eh, a... agulha, carretel de linha, vendia tudo que uma, uma, uma senhora quisesse comprar pra ou fazer ou arrumar ou, ou qualquer coisa de vestuário, né?
D
 Hum, hum. Mas ela se limitava ao setor de vestuário (sup.)
L
 (sup.) Exclusivamente (sup.)
D
 (sup.) Não era como por exemplo hoje lojas (sup.)
L
 (sup.) Não, não, não. Só era coisas de roupa de mulher, quer dizer, de roupa desde a meia até a, a linha, a agulha, a fazenda, a, o sutiã, enfim, tudo.
D
 E outros tipos de coisas onde eram compradas?
L
 Bom, na rua do Ouvidor, na rua Gonçalves Dias, eram as ruas onde tinham coisas pra serem vendidas. E na avenida Rio Branco também, avenida Rio Branco tinha loja! Hoje em dia tem bancos, tem algumas lojas especializadas de óticas, joalherias, etc. mas antigamente era só loja de tudo o que a gente quisesse, desde a casa Carvalho que vendia comida, né, até as tais Fazendas Pretas que ... E tinha os cinemas também, a gente ia ao ci... ao cinema na cidade, porque nos, nos bairros tinham cinemas ordinaríssimos, com cadeiras incômodas, com, eh, aparelhos ruins e, e filmes velhos.
D
 Pulgas. (riso)
L
 Pulgas! (risos)
D
 Iam de bonde?
L
 Hum?
D
 E como se ia à cidade?
L
 Bom (sup.)
D
 (sup.) Era de bonde também?
L
 Ou de bonde ou de automóvel, depois apareceram os ônibus, mas, eh ...
D
 E o abastecimento de casa, a parte assim relativa (sup.)
L
 (sup.) Ah, isso era feito nos, nas, nas vendas, nos armazéns. Os armazéns tinham, até hoje falam muito (inint.) ter um caderno, né, eh, eu tenho meu caderno, não sei o quê, tenho ... Eh, eu quando falo em futebol, né, por exemplo: ah, ele é freguês de caderno. (riso)
D
 O que que é isso?
L
 Era o seguinte, ele ti... as pessoas todas tinham as suas vendas que eram os fregueses, e mandavam buscar, mandava a empregada buscar: ó, traz um quilo de batata, traz não sei o que de feijão, nham, nham. E tinha o caderno, nesse caderno então eles escreviam lá: dona fulana de tal, dona Mariquinha, um quilo de feijão. No fim do mês então ele ia cobrar a conta e, e eram pagas geralmente, hoje a coisa é mais difícil. (riso)
D
 Hoje é mais difícil?
L
 Eu acho que é. (riso)
D
 Como é que é hoje? O senhor participa assim dessas coisas ou (sup.)
L
 (sup.) Não (sup.)
D
 (sup.) Só a sua senhora ou, ou ela (sup./inint.) como é que é (sup.)
L
 (sup.) Não participo de nada. Hoje eu acho que é só esse negócio de supermercado, né, que é pago na hora.
D
 Ham, ham.
L
 Você não sai dali sem, (riso) sem deixar o dinheiro, né? (riso)
D
 Sim, mas e aí? Vai lá e, e ...
L
 Vai lá, compra tudo que precisa ou compra o que é preciso e, e pronto, né, resolve o problema. É mais fácil porque, eh, tem tudo, né, tem carne, tem peixe, tem feijão, tem queijo, tem tudo o que uma pessoa (inint.) conservas, enfim ... E antigamente não, antigamente tinha que ir ao açougue pra comprar carne, tinha que ir ao tal armazém pra comprar o feijão, não sei o quê, tinha que ir numa mercearia um pouquinho melhor pra comprar queijo, pra comprar conservas, né, porque nos tais, nos tais armazéns só tinha o grosso, né, quer dizer, o feijão, o arroz, batata, goiabada, enfim ...
D
 Agora uma outra coisa também que eu acho que é interessante ainda hoje, eh, por exemplo, em fim de estação geralmente as lojas pegam e, e atraem os fregueses com uma, uma série de (sup.)
L
 (sup.) Olha, sabe de uma coisa, essas coisas eu não (inint.) com a razão. Eu tenho um jeito de comprar coisas pra mim, eu compro o que eu preciso e começo a usar e uso, uso, uso, acabo furando a calça, mando botar um remendo, eh, o sapato acaba e eu preciso comprar sapato, preciso comprar calça, preciso comprar camisa, né, mas eu sou muito preguiçoso pra essas coisas, de modo que é até o dia que eu decido. No dia que eu me decido eu vou numa loja, compro trinta camisas, eh, seis ou sete pares de sapato, oito ternos e fico vestido de novo por uns quatro ou cinco anos. De modo que se estão fazendo remarcação de preços ou se não estão, isso é um negócio que eu não, (riso) eu não tomo conhecimento, porque eu tenho que tomar conhecimento de outras coisas. (riso)
D
 Hoje em dia, eh, todo o comércio vive muito disso, né, dessas remarcações, de épocas assim, fim de inverno por exemplo ...
L
 Ah, bom, isso fazem, né, mas eu não estou muito a par disso não porque primeiro não ando na rua (sup.)
D
 (sup./inint.) como que a gente chama? O senhor não vê escrito e (sup.)
L
 (sup.) Ah, vejo como todo mundo vê. Mas eu não ando muito na rua, eu saio de casa vou lá pra fábrica, fico lá três, quatro dias, venho pro Rio, no Rio eu vou a banco, vou no escritório de dois ou três distribuidores que eu tenho e vou jogar bridge ou xadrez no Jóquei Clube. Fora disso raro eu ir a um cinema.
D
 E quando o senhor vai fazer essas compras?
L
 O quê? (sup.)
D
 (sup.) Quando o senhor vai fazer compras.
L
 Ahn?
D
 Deixa eu ver se (inint.) quando o senhor vai fazer compras, qual é a sua atitude, o que é que o senhor diz (inint.) o senhor disse que vai comprar (sup.)
L
 (sup.) Ah, eu nunca pago o que me pedem, (riso) e discuto o preço, uma ocasião a M., minha mulher, achou engraçadíssimo porque eu estava comprando um travesseiro pra um empregado, eh, lá do interior, eu precisava de um travesseiro porque eu precisava acomodar o sujeito lá e tal, precisava comprar tudo. E travesseiro custava, não sei, digamos, eh, oitenta mil réis e eu levei quarenta minutos discutindo com o homem pra fazer uma redução de cinco mil réis. Acabou o homem se enchendo de tal forma que me fez (riso), que me fez o desconto. (riso) Aliás, eu acho muito divertido isso, eu faço isso mais pelo divertimento do que pelos cinco mil réis (riso/inint.)
D
 E quando o senhor vai assim, o senhor falou: de repente eu resolvo, entro, vou numa loja, compro dez camisas, compro não sei quantos lenços, sapato e compro mil coisas ...
L
 É.
D
 Como é que o senhor vai, como é que o senhor escolhe essa loja, como é que o senhor é atendido?
L
 Ah, bem atendido. Eu escolho, sei lá, eu cismo com uma loja, entro na loja.
D
 Só por cismar? Como é que o senhor cisma com ela, pela cara dela? (riso)
L
 Pela cara. (riso)
D
 Pela cara? (riso)
L
 Pelo jeitão. (risos)
D
 E qual é o jeitão que lhe atrai (sup.)
L
 (sup.) Pela vitrina, pela, eh, sei lá. Ah, ultimamente por exemplo eu, eu estava sem roupa nenhuma e a M.H. me pediu pra ir com ela ao, a uma loja pra apanhar umas fazendas que ela tinha comprado prum casamento ou coisa que o valha, não sei, e eu fui, M.H. não estava aqui no Rio, ela estava na fazenda. E eu fui cheguei lá, vi umas fazendas simpáticas pra fazer uns ternos pra mim, comprei meia dúzia e como eu não tinha alfaiate, meu alfaiate morreu, perguntei lá ao homem da loja, ele me deu o endereço, eu fui ao alfaiate e mandei fazer. Pronto, fiquei eu com os seis ternos. (risos)
D
 (sup./inint.) o senhor disse (sup./inint.)
L
 (sup.) Da outra vez eu estava sem nenhum.
D
 O senhor diz que quase não anda na rua, mas o senhor acha, como é que é, as pessoas podem andar livremente na rua, elas não sofrem nenhum tipo de perigo em todos os lugares do Rio, como é que é esse negócio? (sup.)
L
 (sup./inint.) dizem, né? Eu já tive diversos amigos assaltados, hum? É típico, isso aí é, é coisa da época, né?
D
 É coisa da época?
L
 Eu tenho impressão que sim.
D
 Porque antigamente o senhor não ouvia disso?
L
 Não, antigamente não tinha assalto assim não. Tinha um ou outro. Uma ocasião eu fui assaltado, há muitos anos atrás. Eu tinha saído com uns amigos e acabei a noite num, conversando num, conversando num café.
D
 Daqueles?
L
 Daqueles. E quando fui pro meu carro eu vi um sujeito mexendo no meu carro, dentro do meu carro. Eu puxei ele assim pra trás e disse: que é que você est'a fazendo aqui? E ele botou a mão no bolso de traz, eu pensei que fosse alguma coisa que ele tivesse roubado, ele não chegou a roubar nada. O que é que você tem aí nesse bolso? E ele disse: (riso) é uma navalha, sim senhor. (riso) Eu disse: rouba, rouba, vai embora, o que quiser, rouba o que quiser. (riso) Isso, meu Deus do céu, foi há quantos anos? Foi há uns, sei lá, por volta de mil novecentos e trinta e tantos (inint.)
D
 E hoje em dia o senhor acha que está pior ou melhor?
L
 Evidentemente está pior, basta abrir o jornal, basta abrir o jornal que a gente vê o que, a quantidade de roubos e de assaltos que há por aí. Eu hoje seria incapaz, antigamente, enfim, quando eu era solteiro, porque agora não faço mais essas coisas, eu saía com moças, enfim, e parava o carro nessas estradas por aí pra bater um papinho. Hoje eu não teria mais coragem de fazer isso, ahn? Porque é, (riso) é brincar com fogo, né? Mas isso aqui, até assim mesmo, não está tão ruim assim não, porque na Argentina está muito pior, né? Na, na Irlanda do Norte está muito pior, na, ah, no mundo inteiro está pior. Nos Estados Unidoas está muito pior, né?
D
 Pois é, esse aspecto de insegurança das pessoas nas grandes cidades americanas é bem mais acentuado talvez do que aqui (sup.)
L
 (sup.) É. Foi a C., né, que esteve lá e que disse que foi uma coisa horrorosa. De noite ela não, não podia sair de noite, sobretudo por essa história de, de, de coisas raciais, lutas raciais. É uma coisa tremenda isso. Aqui ainda está muito bom. Está assim porque é da época, porque, eh, há fome, não tem dúvida de que há fome, né? Ou, ou o salário, ninguém ganha o salário, eh, que deveria ganhar, mas também não pode ganhar porque não só o Brasil como o mundo, é, é pobre demais pra manter todo, todo mundo que vive, né? E o Brasil sobretudo é um país pobre, é um país que pode ter uma riqueza, um potencial muito grande, mas, eh, a riqueza real é ... Por que está me olhando assim? A economista. (riso)
D
 É.
L
 Estou, estou muito errado nesse ponto?
D
 Não. (riso)
L
 Ah, bom!
D
 Bom, o que eu gostaria ainda de insistir, do ponto de vista assim do aspecto físico da cidade, o Rio por exemplo em comparação a São Paulo. O senhor conhece São Paulo?
L
 Conheço. Olha, São Paulo é outro tipo de cidade. Eh, comparar o Rio a São Paulo é a mesma coisa que comparar, sei lá, uma árvore com um móvel. (riso) São coisas completamente diferentes. O aspecto da cidade é diferente, eh, o aspecto da construção é diferente, o aspecto da rua é diferente. Então eu gostava muito de São Paulo, adorava São Paulo, ir a São Paulo pra mim era uma festa, agora eu fui a São Paulo ultimamente duas vezes. Bom, a impressão que eu tenho é a seguinte, se eu ... Eu fiquei lá cada vez uns três, quatro dias, se eu tivesse ficado dez dias, eu voltava direto pro Pinel.
D
 Por quê?
L
 Porque São Paulo está neuroti... neuro... neurotizante. É o, é a rua, é o movimento, é a gente, é o barulho, é a poluição, é, é a mentalidade das pessoas de São Paulo. Em São Paulo, eh, bom, a gente não fala em, em cem mil contos em são Paulo, se, se eu dissesse eu vendo, eh, cem mil contos, todo mundo me olharia com profundo desprezo, porque em São Paulo só falam de bi, eh, eles nem dizem bilhão, é só bi porque dá muito trabalho dizer bilhão: porque eu, eu vou fazer um negócio aí, vai dar três bi. E o outro: e, mas ele perdeu quatro bi! E: eu vendi aquele negócio por cinco bi. É só bi, não usam mais cruzeiro nem bilhão, é só bi. (riso) Fica mais fácil pra poderem falar em mais bi. (riso) E ...
D
 O senhor falou no aspecto assim de poluição e isso tem sido assim um dos temas mais tratados hoje em dia em relação aos grandes centros.
L
 É.
D
 Em São Paulo o senhor notou isso, o senhor chegou a perceber a coisa assim como?
L
 É, o ar de São Paulo era, era outro que não é hoje, ahn, era outro. O ar de São Paulo era, era um ar de montanha, hoje é um ar de, de, de, sei lá, de cortiço, ahn? É um ar, sei lá, pesado, um ar desagradável, não, não é mais o que foi São Paulo. Pode ser que haja uma solução pra isso, mas eu não vejo solução nenhuma. Aliás, eu (sup.)
D
 (sup.) Isso é decorrência da, da (sup.)
L
 (sup.) Hum? (sup.)
D
 (sup.) Isso é decorrência do processo de industrialização lá? (sup.)
L
 (sup.) Evidentemente que é, né? Evidentemente a quantidade de gás carbônico que tem lá espalhado pela atmosfera, né?
D
 Agora uma outra coisa que eu notei também no aspecto assim ultimamente ... São Paulo pra mim se caracterizava como uma cidade plana e de casas.
L
 É, aqueles bairros residenciais de São Paulo era o lugar que eu acharia ideal pra viver, mas hoje em dia aqueles bairros residenciais, eu não vi todos, mas os que eu vi quase todas as casas são escritórios, quase todas, não é?
D
 E ao lado delas construções ...
L
 E ao lado delas construções enormes, maiores que aqui, do que as do Rio, né?
D
 Seria como Botafogo, agora, uma coisa parecida com o que aconteceu com Botafogo?
L
 Não, São Paulo ... Botafogo é, é, é pinto perto de São Paulo, Botafogo é uma (sup.)
D
 (sup.) Não, eu digo nesses bairros.
L
 Nesses bairros residenciais? Não, esses bairros residenciais de São Paulo eram bairros suntuosos. Botafogo tem algumas casas suntuosas, algumas, mas nessas ruas internas, oitenta por cento são casas bastante modestas. São Paulo não, São Paulo a gente chegava no Jardim América, eram palacetes ao lado de pala... Palacetes que eu digo não são palacetes, com jeito de palacetes não, são residências, eram residências sensacionais, com jardins lindos e com, com casas modernas, que eu gosto muito de arquitetura moderna, casas modernas maravilhosas. Era uma, era um esplendor aquilo. Hoje não é mais, porque, eh, aquilo tudo é escritório com letreiros luminosos ou foram derrubados e, e, e, e são prédios enormes, né? Também não sou contra prédio enorme, mas, eh, não tem mais o, o charme que tinha.
D
 É, porque dizem que muito da razão, do aspecto assim de São Paulo, espraiado e com bairros residenciais, casas (sup.)
L
 (sup.) Bom (sup.)
D
 (sup.) E o Rio não ter isto era muito em decorrência da topografia (sup.)
L
 (sup.) Da gaita, (riso) o negócio é de dinheiro, porque aquelas casas custavam uma nota e aqui o Rio de Janeiro é uma cidade mais pobre do que São Paulo, porque não tem a, o potencial econômico que São Paulo tem, né? São Paulo é uma potência econômica, né? A prova é que só falam em bi. (riso)
D
 Sim, mas e a topografia, por exemplo, do Rio de Janeiro (sup.)
L
 (sup.) A topogra... (sup./inint.)
D
 (sup./inint.) o aspecto físico do local em que se construiu a cidade, o senhor acha que não influiu nisso?
L
 Não, não tem influência nenhuma. Por exemplo a Barra da Tijuca, a Barra da Tijuca tem uma topografia muito boa, ótima, e, no entretanto, eu outro dia passei por lá, almocei até lá porque eu vim, em vez de vir pela Rio-São Paulo, eu vim por fora. Era hora do almoço, almocei lá e tal, depois eu quis procurar um pouquinho essas casas dessa gente, desses artistas e dessa gente que tem muito dinheiro e que tem casa lá, casa sensacional, com piscina dentro de casa, com isso, né? Não encontrei as, as tais casas. Em compensação eu encontrei centenas de casas o que há de mais mau gosto, o que há de mais pobre como construção, como material, como tudo. Quer dizer, e é um, é um, enfim, um bairro novo, que poderia ser igual a, àquele de São Paulo (inint.) Marumbi, né, Morumbi, eh, e então é, é um, é um Vila Isabelzinho que estão fazendo lá. Talvez tenham casas muito boas lá, mas não, não estão à vista assim. (riso) Acabou?