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PROJETO NURC-RJ

Tema: "Família"

Inquérito 0145

Locutor 164
Sexo masculino, 40 anos de idade, pais cariocas
Profissão: engenheiro
Zona residencial: Suburbana

Data do registro: 10 de abril de 1973

Duração: 40 minutos

Som Clique aqui e ouça a narração do texto


D
 Pode começar.
L
 (inint.) senão vai sair uma coisa sem pé sem cabeça. Você tem que programar antes porque senão sai sem pé sem cabeça.
D
 (inint.) sobre a família.
L
 Família.
D
 Você pode começar falando, por exemplo, da, da sua infância, o relacionamento familiar, como eram as pessoas.
L
 Ah, sei, sei. Isso eu posso comentar até bastante. A, a nossa infância foi uma infância praticamente toda metodizada. Nós tínhamos hora pra tudo, hora pra estudar, hora pra se divertir e papai infelizmente, devido às atividades que ele possuía, atividades árduas, inclusive casado sem ter se formado num curso superior, então ele trabalhava muito e não tinha às vezes atenção para conosco. Era uma dificuldade tremenda. Nós sentimos muita falta disso. Eu me lembro inclusive que a gente possuía aquele pavor, aquele medo de papai, aquela coisa que ele quase não aparecia. Ele sempre quando chegava nós estávamos dormindo, quando saía nós continuávamos dormindo. Isso era uma coisa seríssima até. Só sábado e aos domingos é que ele podia nos dar atenção mas assim mesmo, nos sábados e domingos, as atenções eram para estudar. Então sempre nós fazíamos o seguinte: passávamos o ano letivo estudando normalmente o curso da escola e nas férias, nos três meses de férias, nós passávamos estudando justamente as matérias do ano seguinte. Então praticamente nós nunca tivemos férias, só viemos ter férias, eu me lembro, até bem pouco tempo, mil novecentos e quarenta e nove que nós possuímos férias. Fomos pra fora, passeamos, voltamos, depois nunca mais houve férias. Infelizmente minha mãe faleceu. Eu era muito novo ainda, eu tinha o quê? Uma idade de quinze anos e aí é que nós conhecemos a verdadeira história da vida, quer dizer, eram dois filhos, um mais velho do que o outro um ano e quatro meses, então papai procurou ser pai e mãe mas não dava, não havia jeito mesmo de conciliar os dois e o problema de casa ficava sempre no segundo plano. Então ele passava ... Uma das coisas que ele tentou resolver que eu achei até interessante, até hoje eu rio da, das coisas oco... que foram, tiveram, eh, tiveram, ocorreram naquela época, era ele em frente à escola, e nós estudávamos na mesma escola, papai era professor da mesma escola, então ele contratou uma pensão pra que nós comêssemos nessa pensão. Saíssemos da escola, almoçávamos e íamos embora pra casa estudar e tal, etc. Então o que ocorria? Toda vez ele aparecia na pensão e os filhos lá não estavam. Nós tínhamos vergonha de comer na rua. Por incrível que pareça, um com quinze e outro com dezesseis anos. Então nós íamos pra casa e cada dia um pegava a cozinha e o outro pegava a lavagem de prato. Chegávamos em casa da escola pra fazer isso, quer dizer, era duro. Se passaram uns três ou quatro meses. Depois de três ou quatro meses então, nós mudamos o panorama, nós resolvemos a comer na rua porque não dava, não tinha condição. Então meu pai fica noivo de uma ex-aluna dele, casa a segunda vez, aí que foi o desastre. Então nós ficamos sozinhos mesmo porque a madrasta não dava certo mesmo e então nós ficamos morando os dois numa casa sozinho com uma empregada. A empregada se limitava a somente a saber o horário nosso, hora de saída e hora de entrada. Mas as coisas que a gente queria, a empregada ficava ao bel-prazer dela, fazia o que queria, então era uma coisa tétrica. Eu comia na rua, não tinha hora pra comer, era uma luta titânica. Inclusive papai dizia assim: é, P. e P., a vida é árdua, vocês têm é que tirar o curso superior porque aquilo lá que define a vida do indivíduo. Eu pensava em trabalhar, dava aulas particulares, ganhava algum dinheiro, mas queria (sup.)
D
 (sup./inint.)
L
 Matemática. E ele se virava, dizia assim: P., não adianta isso, o ensino da matemática ainda é interessante porque você raciocina, você estuda, você está sempre em dia com a matéria e é bom pra você isso. Se você quer ser funcionário público isso não tem nada a ver uma coisa com outra, com sua profissão. Então me meti e fiz concurso. Primeiro concurso que eu fiz foi pra Sul América Capitalização, tirei o primeiro lugar. Chegando lá, eu estudando engenharia: moço, eu quero um meio expediente. Não tem. Eu digo: então já não tomo posse desde já. Não houve nem fazer exame médico. Então, depois eu fiz exame pro ministério da Fazenda (inint.) passei (inint.) passo pro (inint.) nesta época eu já estava casado, casado e já estava a minha senhora esperando o filho que eu tenho hoje, tem onze anos de idade. E a dúvida minha, bom, terminar o curso. Meu Deus do céu, um ano antes quase eu morri, cheguei a ter um problema pulmonar tétrico. Interessante que não aparece nada, não tive mais nada, nunca mais. Eu devia ter mais ou menos o quê? Uns vinte e três anos, vinte e três anos. Pensei, eu digo: bom, ou eu saio, ou eu acabo o curso, ou eu morro, ou eu fico por aí, mas eu tenho que acabar. Gostava do troço. Mas felizmente passou tudo bem. Nascimento do filho, nascimento do filho foi uma cesariana antes do dia da minha prova de construção civil na escola de engenharia e justamente um indivíduo que eu tinha brigado com ele na prova escrita, meu Deus, eu digo: eu tenho que saber mais do que esse homem, que se não souber, já viu, estou reprovado. Fiquei naquele estado de nervos, minha senhora com esse problema de cesariana. Eu digo: é, a vida é interessante. Fui fazer a prova, tranqüilo, passei. Então, daí pra cá a coisa surgiu num, num mar de rosas e a verdade foi o que papai falou, disse: olha, tira o curso superior que a vida está resolvida, agora estude pra aprender, não estude pra passar. Sempre isso eu digo a meus alunos, à noite, quando eu dou aula: estudem pra aprender, passar é conseqüência, o negócio é aprender. Eu aprendi aquilo e atualmente, até a respeito dessa entrevista, vocês estão vendo a dificuldade de tempo pra, pra entrevista é por isso. Um, um pede aqui, o outro pede aqui, o outro pede ali. Há bem pouco tempo, semana passada, me telefonou o doutor F., que é engenheiro e dá aula na faculdade, Universidade do Estado da Guanabara, e dá no Gama Filho, ele disse, conversando com o doutor D., que é coordenador, ele disse: eu tive um enfarte, não vou poder dar aula, mas quem é o rapaz que vai me substituir? Bom, é o P. Então telefona pro P. Então, quer dizer, estão querendo ainda me arranjar esse serviço a mais. Eu não agüento mais. Quer dizer, de manhã na firma particular, de tarde aqui no IPEG e à noite dando aula na escola de contabilidade do SENAC, no curso técnico de contabilidade, quer dizer, a vida pra mim (sup.)
D
 (sup.) E a família como é que é?
L
 A família nesse ponto é espetacular. Bem, eu coordeno tudo, meu filho foi criado também na mesma batida, mas uma batida diferente da minha, que nós tínhamos praticamente aquele respeito, papai era austero. Não, o meu garoto não, o meu garoto tem em mim um irmão mais velho. Ele brinca comigo, eu chego em casa está sempre brincando comigo, me gozando inclusive que ele está nessa idade, está com onze anos. Então a gente começa a fazer qualquer coisa, ele interpreta de outro sentido já pra me chatear. Mas eu incuti na, na, nele e na minha senhora que é professora o hábito de leitura. Ele adora ler. A vida dele é sentar pra ler, pesquisar, descobrir, ele quer saber tudo, tudo ele pergunta. Ele tem ânsia de saber. Tudo ele lê, que interessa, ele lê. Então eu disse: meu filho, o teu pai trabalha, o teu trabaho é estudar, então você vai pra escola, volta da escola, toma seu banho, almoça, vê seu programinha de televisão, duas horas você começa a estudar até as cinco e meia, seis horas começa outro programinha de televisão, você pára de estudar, vai ver seu programinha de televisão. Às vezes ele sente, o que ele sente mais em mim, em relação a mim é o problema da noite. À noite ele sempre me pede: puxa, papai, hoje não vai dar aula, papai. Mas eu tenho que dar aula. Esse que é o drama. Eu, eu fico até chocado, às vezes eu sinto. Segundas feiras eu, eu não vou dar aula, mas eu tenho serviço em casa pra fazer, pra colocar em dia, quer dizer, sábado, domingo e segunda eu trabalho muito em casa. Mas eu digo a ele: o dia de semana, estudar, tem hora de estudar, hora de brincar, hora de tudo. Sábado e domingo (sup.)
D
 (sup.) E é um só?
L
 Um só. Sábado ele (sup.)
D
 (sup.) Não teve outro?
L
 Não tive outro, fiquei com medo. Eu perdi a minha mãe com quinze anos, quando eu vi a cesariana da minha senhora, eu digo: eu não vou querer ficar viúvo com esse garoto, vai ser uma desgraça.
D
 Mas por quê? Houve alguma relação entre (sup.)
L
 (sup.) Não. O garoto nasceu muito grande e a minha senhora é miudinha, pequenininha, tem um metro e cinqüenta. Então eu digo: outro filho, o garoto nasce maior, dá uma complicação, problema de hemorragia, um problema seríssimo. Eu digo: não, o melhor é ficar com esse aí, está tudo cem por cento, deixa, é (sup.)
D
 (sup.) Não acha que pra ele (sup.)
L
 (sup.) Pra ele não é (sup.)
D
 (sup.) Ser sozinho.
L
 Não, ser sozinho pra ele, ele praticamente, ele não sente as dificuldades que eu não faço todas as vontades. Eu controlo ele de tal modo, controlo ele à distância. Ele tem onze anos, ele sai. Ele vai pra escola sozinho, volta sozinho, pega o seu ônibus. Mas de vez em quando eu faço, vigio pra ver como ele se porta. Eu sempre recomendo em casa, dou aquela orientação que deve ser dada, oriento e fiscalizo. De vez em quando, não é sempre, porque senão ele se sente tolhido, quer dizer: poxa, mas eu já estou grande e mamãe fica tomando conta de mim, papai fica tomando conta de mim. Não po... não pode ser assim porque um dia ele vai ter que ficar só, ele vai ter que resolver problema sozinho.
D
 Agora só uma perguntinha.
L
 Pois não.
D
 Eu tenho uma curiosidade grande em relação a filho.
L
 Sei.
D
 O senhor acompanhou assim a evolução dele, desde que ele nasceu.
L
 Toda, toda.
D
 O senhor podia contar assim, eh, esse, essa, curtiu esse, o garoto?
L
 Ah, curti, curti.
D
 Como é que foi?
L
 Ah, eu até, eu não sei, talvez me chamem de papai coruja, mas eu me lembro muito, logo que ele nasceu ele teve um problema, um problema de fome. Ele chorava de fome. Era uma coisa impressionante e minha mulher não sabia de nada. Felizmente descobriram e tal, se alimentava direitinho. Por fim nós arranjamos um carrinho porque a minha senhora já não agüentava mais em pé, no colo. O garoto, eu não sei, talvez isso seja já a natureza, as crianças de hoje talvez nasçam mais evoluídas, eu não sei, não compreendo isso, não sei explicar. Então colocava o garoto no carrinho numa posição na sala, quando nós voltávamos pra olhar pra ele, ele já não estava na sala. O garoto tinha o quê? Se tivesse uns cinco ou seis meses era muito. Uma coisa impressionante. Eu digo: meu Deus do céu, o que que está ocorrendo? Então eu passei a tomar conta. Como é que ele descobriu que colocando o pé na roda e abaixando o pé fazia a roda girar e o carro andava? Eu consegui, inclusive eu tenho até hoje e mostro a ele e ele até ri, numa hora que ele estava fazendo isso eu bateu, bati uma fotografia. Mas é um espetáculo. Agora, a princípio ele teve um problema interessante. A minha senhora comprava as historinhas do Tio Patinhas e lia pra ele, mostrando as figurinhas e ele ria, gargalhava. Ele não sabia ler, ele apanhava a mesma historinha e contava a história que a mãe falava por intermédio da figura que via. Então todo mundo que via ele com a revista aberta tinha a nítida impressão que ele estava lendo. Ele não sabia nada, nem uma letra ele conhecia. Você vê a gravação, a facilidade que ele tem de gravar as coisas. Eu achei impressionante. Talvez essa facilidade de aprender que o garoto tem, que eu não tenho problema nenhum com ele pra estudar, nenhum problema. Ele sabe a hora de estudar, tira as notinhas boas, tudo tranqüilo. Quando ele erra diz: papai, isso daí foi besteira que eu fiz na hora, não deu, eu marquei errado, eu não sei por quê, foi descuido. Mas ele não tem esse problema por isso, que desde cedo a mãe colocou-lhe o hábito de leitura, mesmo sem ele saber ler, quer dizer, era figurinha, ela contava a história do quadrinho, no outro quadrinho contava a historinha, então ele abria ... Um dia o, até o meu irmão chegou em casa e viu o garoto sentado, o garoto estava com três anos, com a historinha do Tio Patinhas e rindo, gargalhando. Não tinha nada pra rir. Então meu irmão começou a ler pra ele a historinha: titio, não é isso que está escrito aí não, não é isso não, mamãe não leu isso. Impressionante como é que ele conseguia gravar. Então foi evoluindo na escola. Depois pra ir à escola, louco pra ir à escola, uma vontade pra ir, de ir pra escola tremenda. No dia de ir pra escola não quis ir pra escola, então aí eu quase perdi a cabeça. Foi a primeira vez que eu bati no garoto, que eu me arrependi até hoje, me arrependo até hoje. Dei umas palmadas nele, duas palmadas, ficaram marcadas cinco dedos no garoto. Eu digo: interessante, eu ... E a, a minha senhora disse: não adianta isso, ele vai pra escola. Dito e feito, ele foi à escola. Hoje o castigo é dizer: não vai pra escola. Ele adora a escola. Estuda direitinho, tranqüilo, traz os ... O professor manda lá comprar umas, umas figuras lá pra você fazer esses recortes, fazer um mural aqui pro caderno tal. Ele sai: papai, eu quero dinheiro, vou ao jornaleiro escolher as fotografias que o professor pediu. Perfeitamente, ele vai lá e faz sozinho, não quer que ninguém ajude. Ninguém ajuda e ele faz sozinho, ele estuda sozinho, tudo sozinho. Tem dúvida: papai, eu tenho uma dúvida aqui, o senhor podia me explicar. Seja de matemática, seja de ciências, seja de, de português, qualquer assunto ele vem e me pergunta. Ele tem dúvidas. Se ele apresenta dúvidas é porque estuda. Que a gente vê o resultado das notas. As notas dele são oito, sete, oito, nove, sete. Eu disse a ele sempre: não quero que você seja gênio, eu quero que você estude um pouco. Agora minha senhora é que se sente um pouco, agora nessa fase, um pouco deslocada porque ele se sente já homem. Interessante. Não que ele tenha vergonha da mãe não, ele se sente mais homem, então ele só quer tratar comigo, quer dizer, deixou a mãe de lado: não, mãe, você já era. Que ela tomava conta quando ele estudava no curso primário, entendeu? Agora ele já se sente mais importante: não, mamãe, eu tenho é que tirar as minhas dúvidas é com meu pai (sup.)
D
 (sup./inint.)
L
 Ela é professora primária. E eu digo: não, meu filho, mamãe também sabe, quando papai não estiver você pergunta à mamãe. Então, agora ele já está se acomodando mais a perguntar à mãe. Mas ele não queria. Uma coisa interessante. Ele queria, está pensando que papai está num degrau mais alto, agora é só ele que vai me ensinar. Eu não quero mais, mamãe já passou, mamãe é do curso primário. Uma coisa interessante que, que ocorreu em casa que eu achei impressionante. Eu digo: meu Deus do céu, como é que esse garoto está atinando pra esse, percebendo o nível que sobe à medida que o indivíduo estuda. E não perguntei a ele a profissão que ele queria nem coisa nenhuma, mas ele se encasquetou na cabeça que ele quer ser médico e então me obriga a comprar "Os Cientistas". Tenho que comprar, todo dia eu levo, apareceu "Os Cientistas" eu levo. Vai ele fazer as experiências, fenolftaleína, aquelas coisas todas que a gente aprendia no, no curso ginasial, o garoto com onze anos está fazendo. Ele tem seu laboratório, faz isso tudo. Impressionante.
D
 Os outros elementos da família além do senhor, sua mulher, como era?
L
 Não. Infelizmente a minha senhora parece que é a ovelha negra da família, como se diz na gíria. Ovelha negra porque foi a única que conseguiu estudar, porque eu quando a conheci era pobre, muito pobre, e eu estudava, tinha curso, o tal curso onde eu dava as aulas pra ganhar algum dinheiro porque eu estudava. Conheci essa moça num, num, na festa de aniversário e ela estudava e queria ser professora. Eu digo: bom, eu preparo moças pra o curso de professora, você querendo, entra lá no curso, a gente ensina tudo direitinho. Mas uma dificuldade, muito pobre. Então eu digo: não tem problema, vamos lá no curso pra estudar, porque eu não dava francês nem inglês. Só dava matemática, história e português e ciências. Eu digo: vou arranjar o curso de um conhecido, não tem problema, a gente faz um preço. Ela foi estudar na, nesse curso. Não podia nem pagar o curso. Eu digo: não tem importância, eu pago o curso pra você. Você não quer ser professora? Pago o curso pra você. Uma dificuldade tremenda. Então o que ocorre é o seguinte: eu moro, atualmente moram comigo a, a minha sogra e a minha sobrinha, minha senhora e meu filho. Então a gente sente na conversação a diferença entre a conversa entre pai, mãe e filho. O garoto participa como se fosse gente grande, ele sabe o que está certo, ele sabe o que está errado, ele não, nós não escondemos nada dele. Ele sabe tudo, mas tudo direito, ele aprendeu tudo direito, não aprendeu torto, não aprendeu na rua, aprendeu em casa, quem ensinou foi o pai e a mãe. Mas a conversa entre os três é muito diferente entre palestra com a sogra e a sobrinha. A sobrinha então é um drama. Até eu forço ela estudar. Agora praticamente está querendo tirar um curso profissional. Vamos ver se tira, mas é uma dificuldade tremenda, é uma garota rebelde, está com, já com idade avançada, tem vinte e um anos. Mas a gente quer mostrar o caminho certo, não acredita. Tem que estudar, pra ser alguma coisa, tem que estudar e a vida é essa mesma, pra tudo, inclusive pra lixeiro o indivíduo tem que estudar. Então como eu não quero que ela tenha um emprego de nível baixo, quer dizer, que ela possa ter uma vida mais tranqüila, então eu forço pra estudar, mas então a minha sogra interfere, que é a netinha, é a netinha. Então o que ocorre? Cria um trauma em casa. Então o que eu faço é o seguinte: eu me tranco. Eu digo: eu não vou me aborrecer com ninguém, eu não posso é brigar, brigar não vou brigar. Eu me dei muito, sempre muito bem com a minha sogra, foi a segunda mãe que eu arrumei, foi a minha sogra. Foi logo que eu me casei, fui morar com ela. Ela tem, é velha, já idosa, bem idosa mesmo, tem oitenta e dois anos. Apesar de ter irmãos mais velhos do que eu, toda hora que ela está em dificuldade sou eu que resolvo. Ela quer que eu resolva. Eu sou o genro que resolve. Ela tem dez filhos e eu sou o marido da caçula que vou resolver o problema da sogra, então eu não vou brigar com ela por causa da sobrinha, por causa da neta, eu deixo pra lá. Paciência. Vamos ver o que que vai acontecer. Não está ...
D
 E o seu irmão?
L
 O meu irmão não. O meu irmão fez faculdade de filosofia. Mas eu fiz engenharia, fiz filosofia, passei nas duas, fiz engenharia só.
D
 Filosofia é o quê?
L
 Matemática, matemática e física. A turma em casa toda é matemática. Meu pai é engenheiro e é professor da UEG e da Faculdade de Humanidades do Pedro II. Hoje ele está aposentado, está com setenta e dois anos, quarenta e dois de magistério do estado. Até hoje eu: papai, você está vendo? Você foi cuidar da profissão de professor, que eu não quero ser mais, que é a maior infelicidade que um indivíduo pode ter na vida é ser professor. Pelo seguinte: que a gente vê os frutos, as sementes que nós plantamos crescerem, darem flores bonitas e nós vamos ficando murchos, sempre numa situação difícil, numa situação inferior, numa situação superior somente em gestos e em palavras, porque o resto, o professor no Brasil, infelizmente, é assim. O professor é uma maravilha, o professor é um espetáculo mas, coitado, o professor sabe bem dele como é que ele vive. Ele vive a pé, pendurado num ônibus porque não tem condição pra comprar o seu carrinho pra ir pra escola. Ou então tem que dar quinze aulas por dia pra conseguir fazer um salário de três milhões de cruzeiros. Então, imagina que drama! Eu dando aula há dezoito anos nessa escola que eu dou, e dando aula quinze aulas por mês, quinze aulas por semana que são praticamente sessenta aulas por mês, salário de mil cruzeiros. É insignificante. Então eu ... E engenharia praticamente é o que eu faço. Vivo, posso viver com o salário da engenharia. Meu pai, não. Meu pai é professor, vivendo dificuldades também, pais semi-analfabetos, uma luta tremenda pra conseguir estudar. O que ocorreu foi isso, primeira oportunidade que apareceu foi concurso pra professor do estado e ele fez, na época do Getúlio Vargas, se meteu lá dentro, se meteu lá dentro, esqueceu engenharia. Agora com setenta e dois anos é que ele está voltando a fazer engenharia pra se distrair, pra não ficar sem fazer nada. O meu irmão, não, o meu irmão queria ser professor, fez o curso da faculdade de Filosofia, fez o curso de matemática também, dá aula também na mesma escola. Mas pra casar ele viu: Bom, salário de professor não dá, P., eu tenho que fazer o seguinte, eu vou fazer um concurso pra Petrobrás. Queria ser técnico instrumentista da Petrobrás, então foi pra São Paulo, fez o curso todo em São Paulo. E era um dos primeiros, conquistou o primeiro lugar, foi pra Petrobrás, passou lá doze anos. Doze anos, veio aquela limpa: indeniza, manda embora, é subversivo, não é subversivo. Esse é um problema que (sup.)
D
 (sup.) Ele mora aqui no Rio?
L
 É, não, aqui, eh, na re... refinaria Duque de Caxias. E então ele disse: graças a Deus, eles me mandarem embora, será um bom negócio porque o salário aqui já não está sendo vantajoso. Quem vê aquilo, redução de salário, gratificações, não sei o quê. Mandaram embora, indenizaram ele, mandaram embora. Então chamaram ele pra trabalhar no elevatório do (inint.) no elevatório do (inint.) ele chefiou um departamento, tranqüilo, tranqüilo o serviço dele. Muito mais rendoso. Mais responsabilidade, lógico, né, que a renda é em função da responsabilidade. E continua dando, dando aula.
D
 Ele tem filhos?
L
 Casado, tem dois filhos, um casal de filhos. O sistema é o mesmo porque foi o sistema que meu pai usou. Aliás, papai, nesse ponto eu não tenho que reclamar. Às vezes eu faço com meu filho certas coisas que é obrigar o horário, que quando chega às vezes visita em casa e tal ele quer sair do horário. Eu digo: meu filho, olha o nosso horário. Papai: o meu neto, eh, vovô, ah, P., hoje e tal. Eu digo: na nossa época não tinha isso, vai ser o horário e tal, como manda o figurino. E ele cumpre o horário, por exemplo, hoje ele está em casa. Ele fica em casa sozinho com a empregada. Ele tem onze anos. A empregada cuida, ela toma conta, a empregada, e faz estudar. Bota os livrinhos em cima da mesa de jantar. Tem quarto pra estudar, estuda muito. Mas vai pra mesa de jantar porque a mãe não está, a mãe vai pra escola, às vezes pra cidade e ali ela controla tudo e inclusive o estudo dele. Dá seis horas da tarde, a minha senhora chega em casa as cinco e meia, ele continua a estudar até as seis. Aí ele pára, vai tomar o seu banho, vai ver a sua televisão. Isso é todo dia, cronometricamente.
D
 (inint.) e nesse (sup.)
L
 (sup.) Nesse (sup.)
D
 (sup.) Período de férias, de (sup.)
L
 (sup.) Período de férias geralmente eu digo a ele: férias é pra se divertir. Teu pai não tem mas quando ele tem é pra se divertir. Então o que eu faço é o seguinte, programo as minhas férias. Durante o ano eu pergunto a ele: você quer ir pra onde? Você quer ir pro norte, quer ir pro nordeste, quer ir pra São Paulo? Quer ir pro sul? Quer ir pra Argentina? Pra onde você quer ir? Pergunto. Tanto que esse ano eu queria ver se iria. Nós estamos, tínhamos programado ir pra Argentina, comprei um automóvel, vamos pra Argentina, não custa nada dar um passeio na Argentina. Mas infelizmente o excesso de trabalho, mas é uma coisa de louco. Me surgiu em janeiro, mas é uma coisa astronômica, particular, serviço particular. Eu digo: não posso perder essa oportunidade de ganhar dinheiro, pra aproveitar. Mas não tem importância, nós tiramos a diferença depois. Mas assim mesmo nós conseguimos tirar dez dias de férias em Cabo Frio. Eu digo: não, vou passar uns dez dias pelo menos, pra não dizer que não houve férias. Mas assim mesmo nas férias ele, de vez em quando, volta ao assunto de estudar, pra não esquecer que as férias foram feitas pra se divertir, pra não ter compromisso sério, mas a gente deve ler alguma coisa importante que você já estudou, pra quando ele voltar pras aulas, você não voltar na estaca zero, não é isso? Então ele direitinho chega em casa antes das férias e dá uma lida naquilo tudo, passa um espanador na memória, pronto, está prontinho pra ir pras aulas. Vêm as aulas, levanta cedinho. Interessante que até eu obrigo a ele, eu coloco o relógio pra despertar. Eu digo a ele: meu filho, você me acorda. Ele é o despertador, porque antes do despertador despertar (interrupção)
D
 Agora uma outra coisa.
L
 Hum.
D
 Será que o senhor podia contar como é que foi, eh, o período de namoro de vocês?
L
 Ah, o nosso período de namoro foi (sup.)
D
 (sup.) A evolução (inint.)
L
 (sup.) Foi, justamente, o que ocorreu foi isso. O que ocorreu foi uma coisa interessantíssima. Eu digo com sinceridade, pouca gente acredita. Eu estudava, a minha senhora estudava, então nós namoramos praticamente nove anos. Foi, não foi um namoro. Foi mais eu a ensinar a ela pra ela terminar o curso e fazer o curso normal e eu estudando engenharia. Eu me preparei, me meti no curso, tirei o ... Fiz o vestibular, passei e fui estudar. Então, uma fase do nosso namoro praticamente não foi namoro, foi estudar, se preparar pra tal ... As brigas eram homéricas. Nós, nós brigamos tudo que tínhamos que brigar antes, pra não brigar depois. Aqui tem cigarro sim. Nós brigamos antes. A minha sogra, logicamente, como era filha única, a minha sogra já estava em idade de, o quê? Os seus sessenta anos (pigarro) estava louca pra se ver livre da filha. Isso é uma coisa normal, de mãe, eh, antiga, eh, louca que a filha case pra ficar livre. Quando é rapaz não tem problema porque ele vai trabalhar, é homem, não tem problema. Mas a moça, é um troço tétrico: mas o P. lá namorando esse tempo todo. Não dava certo, não dava. Então a minha sogra não me topava. Então nós brigávamos, podia contar, podia contar que a velha dizia: não, aqui esse P. não pisa mais. Passava-se um tempo e tal. Daqui a pouco a minha senhora saía, a minha namorada saía: vou ao cinema. Quando voltava: já sei, encontrou com o P. Eu digo: justamente. Ela dizia pra mãe, a mãe ficava furiosa, ficava danada da vida. Mas não havia jeito, se metessem no nosso namoro, brigavam porque estávamos juntos. Não houve jeito mesmo. Mas a turma não acreditava. Aí, eu acho, isso devido, porque eles são nordestinos. Os filhos foram criados praticamente na marinha. Ela, muito pobre, perdeu o marido muito cedo, então teve que botar, colocar os, os, os filhos todos na marinha pra serem orientados. Todos eles são caras cem por cento, são tabalhadores, são uns reformados da marinha já e tudo, mas não evoluíram estudando. Esse é que é o problema. Então são uns indivíduos grossos, entendeu? Qualquer coisa só quer resolver na, no tiro, no tapa, na briga. A coisa não é assim. E eu um indivíduo completamente de conversa, uma conversa danada, porque à medida que a gente vai estudando logicamente a conversa melhora, e eles não me suportavam, quer dizer, o P. tem uma conversa danada, não é, e precisa levar uma surra, tomar vergonha, casar logo. Como é que eu podia casar? De que jeito? Eu digo: eu vou casar contigo pra deixar você passando fome, pra ficar numa situação pior do que você está em casa? Não vou fazer isso.
D
 E quando resolveram casar?
L
 Quando resolvemos casar, não deu outra, casamos mesmo. Eu estava na quarta série, ela tinha um ano de, de formada, um ou dois anos de formada, já trabalhando, porque eu disse a ela: minha filha, eu caso com você, você vai dar aula em Santa Cruz, eu estudando, como é que vai ficar a história? Não vai. Você tem que arranjar um jeito de você vai pra lá (inint.) então eu estou programando tudo, que tudo na minha vida foi programado, até isso. Olha, você estuda, tira o curso, vai pra Santa Cruz, arranja os pontos e volta. Quando você voltar, tá. Não deu outra. Voltou de lá, tem os pontos suficientes. Perfeitamente. Então nós vamos agora casar. Casamento de gente sem dinheiro. Você já viu como é?
D
 Como é que foi isso (inint.)
L
 Crianças, tudo bonitinho, tudo bonitinho. Noivado foi no aniversário lá da, da, da irmã. Aproveitamos, pedimos lá a coisa direitinho ao, ao irmão mais velho. O irmão mais velho que já não ia com a minha cara cedeu assim mesmo com muito, com muita raiva. Mas ela era de maior idade e eu também. Não houve jeito. Agora vejamos o casamento. O casamento foi o fim, segunda-feira. O dinheiro da igreja eu não tenho. O senhor tem? Não tenho. Enfeitar a igreja muito menos. Então o nosso casamento só vai ser de um jeito. Nós vamos lá no juiz, tratamos do papel, eu vou tratar porque eu não vou pagar ninguém, porque não tenho dinheiro. Eu casei, eu ganhava oito contos de réis por mês, oito cruzeiros, minha mulher ganhava parece que sete ou seis. Não dá pra nada, coisa nenhuma. Eu digo: bom, como é que eu vou pagar a igreja? Não dá. Então o padre vai me desculpar. Eu sou católico, tudo bonitinho, tudo legal, mas não vai dar. Fomos lá, tratei dos papéis, correram os proclamos lá, quinze dias, tudo bonitinho. Ninguém. Marcou o dia, fomos pra lá, casamos. Festa, bom, festa, a turma só gosta de comer em casamento, né? Não tem importância, nós vamos fazer um almoço, mas um almoço daqueles. Então fizemos um almoço. Teve gente que levou comida pra casa porque nos ... Dava, tinha saído da, da, da escola, justo a Cesário de Melo, em Santa Cruz. E lá tinha criação de porcos, de galinha, etc. Não teve dúvida. Pedi o carro do meu pai, fui pra lá, arranjei um, uns leitões. A turma lá muito cem por cento mesmo. Então, não, o casamento da professora, não, eu mato um leitão, eu faço isso, eu faço aquilo. Vamos dar comida a essa gente. Tranqüilo. Acabou, fomos pra São Lourenço, pra casa de uma madrinha, também de graça, que dinheiro não existia. Estamos vivendo até hoje e o interessante não é isso: como a nossa vida evoluiu. Eu não tinha carro, não tinha coisa nenhuma. Passou-se o tempo, não queria ter automóvel, nem pensava em ter, mas o meu irmão é louco por automóvel, meu outro irmão mais velho um ano e quatro meses (inint.) não P., apareceu um rapaz ali no Méier que está querendo vender um carro por seiscentos cruzeiros. Eu digo: mas eu só tenho quinhentos. Não, mas eu ajeito, você vai comprar o carro, eu quero que você tenha o carro. Comprei o carro sem carteira. Depois fui tirar a carteira. Mas o carro, meu Deus do céu, se empurrava mais do que andava. Mas o negócio era ter um automóvel. Era um Citroen quarenta e sete, meu Deus, a turma aqui me pega e me gozava, me gozava com o tal carro. Passava, passou-se o tempo, apareceu a firma de manhã para eu trabalhar. Comecei a trabalhar então comprei um fusquinha. Aí eu fui infeliz dois anos depois, quase que eu morri numa trombada com o fusca. Minha senhora quando viu o carro quebrado, meu Deus do céu, o P. não está aqui, ele morreu. O caminhão me pegou pelo lado esquerdo, danificou o carro todo e foi embora.
D
 E o senhor (inint.)
L
 Um negócio tétrico. Nada, nem um arranhão, nem um. Só deu um processo, que é uma coisa enjoada, tem que ir lá no instituto de criminalista e depois a julgamento. Leva um ano, o cara chamando pra depor, repete pra ver se não está mentindo. Um troço horrível, chato à beça. Felizmente o seguro consertou o carro, vendi o carro pelo mesmo preço que eu comprei. Eu não sei. Aliás, eh, a turma me dizia: ô, P., você vai à igreja? Eu digo: não tenho tempo pra ir à igreja. Você vai à macumba? Eu digo: não, porque eu não acredito nesses negócios de macumba. Você, eh, é espírita? Eu digo: também não. Meu Deus do céu, o que que aconteceu? Você só dá sorte. Eu digo: não, eu não dou sorte, eu só procuro fazer uma coisa, que meu pai sempre fez. Eu digo: ele está com problema e me procura, se eu puder resolver e ajudá-lo, eu ajudo, se eu não puder fazer nada, também mal eu não faço ao P. O meu pai, apareceu esse rapaz aí, ele está com um problema seríssimo de, problema de casa: moço, eu não posso resolver, eu me sinto, não responsável, eu me sinto impotente porque eu não tenho condições pra você, se eu tivesse, faria, mas eu não tenho condições. Os livros estão na tabela, é aquele número, acabou. Então eu acho que talvez devido a isso de não fazer ... Só tenho amigos, não tenho inimigos. Em todo lugar que eu passo, eu deixo a porta aberta. Não costumo bater a porta quando saio. Minha liberdade é essa. Me lembro, eu trabalhava no ministério da Minas, eu trabalhava no ministério da Fazenda. Pedi demissão quando terminei o curso de engenharia. E o pessoal começava a me dizer: mas você vai largar esse um por cento do ministério da Fazenda, que é um por cento da arrecadação, que maior que o salário (inint.) mas eu não vou ficar aqui como escriturário a vida inteira sendo engenheiro. Que existia um outro rapaz que era contínuo e era economista. Eu dizia: meu filho, faz um concurso, você vai ficar morrendo dezessete anos nesse troço, vai embora. Eu sou assim, eu sou ambicioso. Sou ambicioso. A minha senhora até repara: P., você é ambicioso demais. Eu digo: sou. Enquanto eu tiver saúde e idade, não me dá trabalho pra ganhar dinheiro que eu estou lá. Estou lá direitinho, vou fazer o troço bonitinho, não vou fazer a coisa de qualquer maneira, faço direitinho. Me dá um trabalho tremendo. Então o que que aconteceu? Aconteceu o fim. Saí, pedi demissão. Fiz concurso pro ministério das Minas, fui trabalhar no ministério das Minas, já casado, garoto novo, veio filho logo, maior desacerto, maior dificuldade. Fui pro ministério das Minas, comecei a viajar. Ah, meu Deus do céu, não conseguia viajar. Ia lá pro nordeste, São Paulo, interior de Minas. Passei uma, uma viagem que eu fiz pra Canópolis, trinta e três horas de ônibus sem parar. De louco. Eu disse: isto aqui não dá pra mim não. Vou ver se faço outra coisa aí porque essa nun... a minha mulher sozinha em casa com o garoto pequeno e eu viajando, não dá. Então saiu um concurso pro estado, FEITEG, seis vagas. Meu Deus do céu, são tantos candidatos, como é que eu vou fazer isso? E a minha senhora: não, P., eu quero que você seja engenheiro do estado. Eu sou do estado, não sei o quê. Mas eu digo: não quero ir. Não queria ir. Então eu saio do ministério das Minas e vou trabalhar na Eletrobrás. Eletrobrás ganhando uma fortuna. Vou pra lá, trabalho lá seis meses. E ela: P., vai fazer exame pro estado. Eu quero que você seja do estado, não sei o quê. Perfeito. Vou fazer. Fiz o concurso. Numa das provas eu tirei quarto lugar s'o porque eu cheguei atrasado numa, numa das provas, quase que eu perdi, quase que eu perdi o concurso por causa do despertador, quer dizer: minha filha, bota o despertador. Não, eu acordo cedo. Coloca o despertador. Não, P., eu levanto cedo. Ela sempre levanta cedo. Naquele dia ela não levantou cedo e despertador não despertou. Quando ela viu o horário, saí louco de casa. Cheguei lá, a prova, a prova quase no meio. Eu digo: moço, só falta essa, essa prova é de conhecimentos gerais, você deixa eu fazer? Pode fazer, não tem problema não. Tem quinze candidatos, dos três mil e quinhentos só existiam quinze nessa prova. Só tinham seis vagas. Bom, se você se der bem o problema é seu. Consegui tirar o quarto lugar, vim pro estado. Saí de lá. Então lá ganhava tão bem e vim ganhar menos aqui só por capricho dela. Não é nada. Coisa incrível. Mas queria, vamos.
D
 O senhor falou que enquanto tiver saúde não tem problema (sup.)
L
 (sup.) Ah, não (sup.)
D
 (sup.) A gente poderia entrar no assunto ligado com, com ramo de família que é exatamente isso de saúde?
L
 Perfeito.
D
 Lá pelo começo da gravação (sup.)
L
 (sup.) Hum, hum (sup.)
D
 (sup.) O senhor falou que teve um problema com (inint.)
L
 Tive, não foi esse problema, excesso de trabalho, excesso de trabalho. Eu me alimentei, eu estava solteiro, eu me alimentei muito. Naquele dia, não sei por que cargas dágua, tinham seis mangas-espada, eu mandei as seis mangas-espada, comi seis mangas. Estourou comigo, furou.
D
 O que aconteceu? O senhor ficava em casa ou teve que ir pra o (sup.)
L
 (sup.) Não (sup.)
D
 (sup.) Hospital (sup.)
L
 (sup.) Aí o que não, o que eu fiz foi o seguinte: o diretor do Carlos Chagas era ami... era amigo nosso, então nós fomos lá, conversou, examinou, chamou o P. (inint.) não esqueço o nome desse homem, especialista em doenças pulmonares. Examinou, examinou: P., só tem uma solução pra isso.
D
 Examinou como? Que tipo de exame?
L
 Fiz radiografia, fiz todo tipo de radiografia. P., só tem uma solução pra isso, pra te aliviar que você está sentindo dores. Quer dizer, houve uma rotura do, do, do pulmão. A pleura se encheu de ar, comprimiu o pulmão, logicamente esse pulmão não está funcionando. Podemos resolver esse problema já se você quiser. A gente faz uma punção na pleura, liqüida. Eu digo: não quero. Aí ele se vira pra mim: eu acho aconselhável você não fazer não porque se eu fizer isso pode provocar uma infecção onde não existe infecção, isso é uma coisa que jamais ninguém poderá descobrir se eu não mexer, só, o único tratamento pra você é o seguinte: você vai tomar vitamina, cálcio na veia e deitado quinze dias e exercício de respiração. Eu passei quinze dias que eu nem me mexia na cama. Nunca mais tive nada e foi o que ele disse mesmo. Agora doença na família, ninguém, ninguém. Só ficam (sup.)
D
 (sup.) E o garoto? Aquelas coisas assim de crianças?
L
 Ah, teve tudo, catapora, coqueluche, sarampo, tudo ele teve. Agora, papai, um homem de ferro. Só teve uma doença, caxumba com quarenta anos de idade. Já imaginou, né? Já imaginou? Casou as segundas núpcias, tem outro garoto de dezesseis, então eu tenho mais um irmão de dezesseis anos e (sup.)
D
 (sup.) E as suas relações com a ...
L
 Com a madrasta? Com a madrasta são, não são aconselháveis, tanto que eu evi... a evito o máximo possível porque ela, não sei por que que ela se meteu a fazer, que era estudante, era ex-aluna de meu pai, ela fez concurso pra engenharia, passou também. Mas acontece que eu terminei e ela não acabou. Então ela tem uma cisma com esse negócio, não sei por quê. Não terminou porque não quis. Vai lá e acaba.
D
 Você não reúne assim (sup.)
L
 (sup.) Ah, não. Não tem condição.
D
 Não tem contato?
L
 Não tem condição.
D
 E nem com seu irmão o senhor (sup.)
L
 (sup.) Ah, não. Meu irmão não. Meu irmão é uma família só. Ah, esse meu irmão (sup.)
D
 (sup.) Esse outro irmão da (sup.)
L
 (sup.) Esse outro irmão? Também é cem por cento. Ele está com problema, chega lá em casa: ô, P., eu quero resolver isso. Na escola ele está fazendo o curso científico. Ele tem problema não procura ninguém, nem o pai ele procura. Ele quer que eu resolva.
D
 E depois, assim com toda essa modificação, quer dizer, antigamente havia uma rigidez muito maior (sup.)
L
 (sup.) É.
D
 Em termos assim (sup.)
L
 (sup.) Ah, mas meu pai continua (sup.)
D
 (sup.) De família, essas coisas (sup.)
L
 (sup.) Meu pai ...
D
 Hoje há uma, eh (sup.)
L
 (sup.) Uma modificação total. E eu lhe digo com sinceridade aquele problema de sentar todo mundo na hora da mesa, fazer aquele negócio. Nada disso. Na minha casa não tem isso porque cada um tem uma hora pra al... pra comer (inint.) lá não se almoça, lá se come. Que almoço é aquela determinada hora, janta é aquela determinada hora. Então, quando eu chego em casa na hora certa, todo mundo almoça e janta junto. Quando eu não chego, cada um almoça, trata de si e eu aviso: cada um trate de si porque eu não tenho tempo, eu tenho que trabalhar. A minha vida é essa até quando eu puder. Quando eu não puder mais, eu vou diminuir o meu trabalho. Paciência. Agora, a, a relação familiar nossa é espetacular. Nós costumamos inclusive a fazer programas juntos, quer dizer, eu junto com a minha mulher, o meu irmão junto com a mulher dele. Então sai aquela patota, cada um com um carro, vamos fazer um programão na Barra ou um programa na, no teatro, um programa em, em pescaria. Tudo, tudo junto. É um espetáculo mesmo. Inclusive tem um garotinho novo, mais um filhote, tem um casal, agora apareceu mais um novinho. Ah, é um garoto espetacular também. Ela estuda direitinho e ele continuou a trabalhar e ela estuda, ela está estudando, está fazendo curso de contabilidade.
D
 Me diga uma coisa, eh, o seu casamento não foi no, na igreja.
L
 Não.
D
 No religioso (sup.)
L
 (sup.) Nada disso.
D
 Os seus garotos foram (sup.)
L
 (sup.) Não, batizado bonitinho, direitinho, primeira comunhão, tudo legal, aquela, aquele ritmo, que a minha avó além de, a minha avó é que era estrangeira, era espanhola mas ela era filha de, filha de, não, como é que se diz? Não. Era da congregação, era dos franciscanos, então tinha aquela vestimenta toda. Meu avô ia lá bonitinho rezar, direitinho, a minha tia, a irmã dela, mesma coisa.
D
 Olha, só pra encerrar.
L
 Pois não.
D
 Como é que foi, eh, o, o batizado, a comunhão do garoto?
L
 Tranqüilo. O batizado foi uma festinha simples, mas na escola, entendeu? O batizado não, o batizado foi feito na casa da minha, da, da madrinha.
D
 Em casa o batizado aconteceu?
L
 Não, na igreja. A festa feita na casa da madrinha, até que ela é falecida hoje em dia. Eu tenho muita pena da, dessa senhora. E a, a, esse negócio de comunhão foi feito na escola, então foi feito junto com os colegas, aquela brincadeira toda, aquela farra. Aquilo pra criança é praticamente uma farra, que tudo pra eles é brincadeira e é, é uma felicidade. Eu acho um, um espetáculo e eu saio às vezes à rua e vejo esses garotinhos de blusa branca e azul. Que coisa bacana. Garotos sem maldade nenhuma, não conhecem nada do mundo, só querem brincar como se fosse um passarinho solto da gaiola. Uma coisa espetacular. Hoje mesmo eu tive esse pra... esse, esse, esse, essa cena presente junto com um senhor que estava aqui perto de nós. Mesma coisa, o garoto sai, perde o lápis, cai isso, cai aquilo. Meu filho, o lápis caiu. E aí ele às vezes pega. Mas a régua, quer dizer, é um lápis por dia, a camisa rasga, o sapato vem todo arrebentado, chuta tudo, quer dizer, esse problema. O garoto meu é um garoto normal, ele vive o drama dele todinho com as crianças. Eu não prendo. Porque é filho único tem que ser ali, seguro. Não, Deus me livre, fazer isso com ele. Então todo problema de religião está, sabe ... Ele às vezes quer saber a respeito, por exemplo, de macumba ou a respeito de espiritismo, a respeito disso, a respeito daquilo. Eu explico a ele tudo e qual a razão, por que existe religião, por que existe aquela religião. O cristianismo como é que era. Mataram gente? Mataram. Jogaram no leão? Jogaram. O negócio foi esse mesmo, foi isso, foi isso. Digo realidade com ele, nunca disse a ele ilusão. Ele não tem medo de escuro, ele não tem medo de coisa nenhuma. O pai dele não tem. Ele não tem medo. Por que é que eu vou sair, vou ao quintal e vou ficar com medo? Medo de quê, meu Deus? Alma do outro mundo? Isso não existe.
D
 Quintal? Vocês moram em casa?
L
 Eu moro em casa. Ele brinca em quintal, trepa em árvore, brin... tem cachorro que é o companheiro dele. É um pastor que é quase da altura do garoto, então ele brinca com o cão. O cão, eh, o cão tem tratamento quase que igual ao dele, médico quase igual ao dele. É vacinado contra cinomose, hepatite, tudo, tudo. O cachorro tem um tratamento especial porque o cachorro é meio violento (inint.) com os estranhos, com ele não. O garoto faz dele o que quer, brinca, joga bola, ele traz a bola, fica correndo. O cachorro cansa e o garoto não cansa. Isso é que é mais interessante. Eu digo: meu filho, o cachorro já está com a língua de fora lá, ele não quer correr e você ainda não cansou? Não, eu não cansei não, papai. Eu digo: meu Deus do céu, um pouco, pára, descansa. Mas as crianças da rua costumam provocar o cão e aquele cão é um cão perigoso porque ele só late depois que morde.
D
 (inint./riso)
L
 É uma coisa incrível, é. Ele fica atrás do portão quieto. O garoto outro dia, eu fiquei impressionado, então eu trato do cão com todas as vacinas justamente por isso, o indivíduo encosta lá pra ler jornal, no muro. Ele pula, morde e depois: au, au, au. Quer dizer, não adianta. Então o homem outro dia encostou lá, tinha tomado aquela já, vacina de não sei o quê, contra gripe, não sei. O braço estava inchado (inint.) encostar? Então encosta no muro. Eu levantei o muro da minha casa, o portão eu aumentei mas assim mesmo eles encostam. Então tem um buraco onde entra o cadeado, o nego bota o dedo e ele morde. Ele está ali embaixo. É impressionante o cachorro. Pássaro não pousa lá em casa. Pássaro? Mata rolinha, mata tudo que aparece. Galinha pulou lá, está morta. É uma coisa impressionante. Gato? Meu Deus, como eu tenho enterrado gato lá. Eu fico chateado com isso. Mas o cachorro não pode ver nada se mexer porque se mexer ele mete o dente. É incrível. Bola, os garotos estão jogando bola, caiu a bola lá em casa, pode contar que está estraçalhada. Ele fura a bola na mesma hora.
D
 Com o garoto não?
L

  Com o garoto, o garoto pinta e borda com ele. Ele determina e ele vai quietinho com o rabinho entre as pernas e faz. É impressionante. Agora, quer ver ele avançar, mexe com o garoto. Mexeu com o garoto, ele vem. É uma coisa in... in... incrível mesmo, coisa impressionante.