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PROJETO NURC-RJ

AMOSTRA COMPLEMENTAR:
Inquérito 28 (masculino / 61 anos)
Tema: Família
Local/Data: Rio de janeiro, 2 de novembro de 1998
Tipo de Inquérito: Diálogo entre informante e documentador
Documentador: C S C


DOC. - Eu queria que você me contasse como era, assim, da sua infância, desde a sua infância, as casas que você morou, como é que era com sua família, onde você morou...
INF. - Mas o que você fala ? Bairro ?
DOC. - Onde você foi criado...
INF. - Bairro ?
DOC. - É ... bairro...
INF. - Bairro ? Tipo de casa ?
DOC. - É como era a sua vida, essas coisas todas...
INF. - Fui criado na Penha, meus primeiros anos foram na Penha. Depois a minha criação, a minha adolescência foram passados em Bonsucesso. Eu comecei morando em casa - residência de um pavimento só. Passei um período da minha infância, morando em apartamento, depois voltei a uma casa espaçosa, com quintal... em Bonsucesso. Assistíamos ao movimento em Bonsucesso ... aliás era até interessante, eu muitos anos defronte a linha do trem. E o trem, na época, era Maria-Fumaça, tinha apito, muitos vagões aquela quantidade enorme de vagões de carga, quando era trem de carga. Então, eu assisti à eletrificação do ramal da Leopoldina, inclusive na época, cruzava-se a linha do trem com facilidade; hoje, existem muros, é um pouco mais difícil. Então assisti o desenvolvimento de Bonsucesso, que, por sinal, parece até que parou no tempo, né ? E a Penha também se modificou bastante, e uma coisa que eu estava lembrando ontem, até curiosamente, as duas coisas que foram construídas pelo meu pai, elas foram desapropriadas pra dar lugar ao progresso: a da Penha é na Avenida Brás de Pina, elas sumiu por força do alargamento da Avenida, tudo isso, e a da Bonsucesso, ela sumiu também pra dar lugar a viadutos e novas avenidas. Então, eu acho que o progresso perseguia o que o papai fazia. Inclusive, até posto de gasolina dele, também, foi engolido pelo progresso porque surgiram outras avenidas que acabaram fazendo com que o movimento do trânsito desaparecesse do local.
DOC. - E foi, foi ele que construiu as duas casas ?
INF. - As duas casas e o posto também.
DOC. - . O posto também?
INF. - . O posto, é. Foram planejadas por eles, foram, as plantas foram feitas por ele e houve muita coisa da mão dele também ali.
DOC. - . Não sabia disso: que foi ele que construiu.
INF. - . Foi, foi. Não, ele não era construtor, entendeu? Mas, o planejamento era todo dele, as plantas, ele que criava, ele que imaginava, e alguém fazia, um construtor contratado fazia.
DOC. - . Aí, vocês passaram, tiveram essa casa em Bonsucesso, essa casa na Penha ...
INF. - . É a primeira casa foi na Penha, inclusive foi praticamente onde eu nasci. Eu não nasci em casa. Na época, quase que todo mundo nascia dentro de casa, sendo atendido por uma parteira, não era muito comum o atendimento por médico, inclusive. Já, eu, nascido em trinta e sete, já comecei a pegar uma fase diferente, então, eu nasci dentro de uma maternidade, mas, por sinal, a maternidade ficava defronte a casa que eu morava na Penha, que eu fui morar depois de nascido. Mas, minha infância foi toda naquela casa ali, até que minha mãe morreu. Eu não me situo bem no tempo, às vezes eu tenho curiosidade, eu tento buscar pra ver em que ano foi, mas, depois, eu esqueço. E, aí, sim, aí eu saí de lá e, depois do segundo casamento dele, nós fomos morar em Bonsucesso. Tínhamos um sobrado, depois ele fez uma outra casa.
DOC. - . Aí, nessa época, ele tinha um posto de gasolina ...
INF. - . Tinha um posto de gasolina, que atravessou, inclusive, o período todo de guerra, com muita dificuldade. Guerra de quarenta de cinco, com o racionamento de combustível, o posto não funcionava aos domingos, não funcionava os feriados, havia o racionamento, um controle muito grande do governo em cima do que se vendia. Na época, o combustível que predominava, que se consumia em casa, que se acendia fogão, era o querosene, embora já existisse o gás, o gás engarrafado, que atendia uma certa área: a de Bonsucesso, Penha, mas não eram todos, só nos eixos principais é que passava o gás,. Então, a maioria da população era atendida por querosene, não existia gás na botija. Então, esse querosene, no final, era óleo comum, e ainda se usava muito lampião, é ... se usava muito lampião. E o racionamento de combustível foi período até interessante , a gente tinha filas enormes. Eu me lembro que eu era garoto e passava pelo posto e via aquela fila enorme de pessoas pracomprar querosene. Formava-se uma fila muito cedo, quando o posto abria, e eram atendidos, porque também não havia querosene com fartura, ele não era racionado como a gasolina. A gasolina, não, era racionada e só era distribuída, só era vendida a motoristas profissionais e só rodava em táxis. Na época, eu me recordo que não existia, se existisse em ônibus eram muito poucos. Então, era táxi, ônibus, caminhão, o que rodava eram os que podiam consumir a gasolina, e todos eles tinham um registro, um órgão especialmente criado para fazer essa coordenação da distribuição dos combustíveis. E tinha cartola, tinha talão, tinha racionamento, só podia receber uma certa quantidade de litros por semana. Tinha uma prestação de contas, todas as segundas-feiras, que era feita pelos proprietários dos postos de gasolina perante o governo para poder receber novo suprimento, entendeu? E tanto que o carro particular só rodava com alguma coisa, uma coisa chamada gasogênio. Já ouviu falar?
DOC. - . Acho que já.
INF. - . Já, né? Era uma verdadeira usina de gás que o sujeito montava, carregava no próprio carro. Então, ele montava na traseira do carro uma usina que fornecia gás a partir do carvão, fornecia gás que é pra movimentar o carro. Era assim que o carro particular rodava. Era uma sujeira infernal. O sujeito, aquilo periodicamente, como tinha uma série de filtros e era carvão, o sujeito desmontava tudo pra poder fazer a limpeza, pra recarregar. Então, tinha lugares que se fazia isso e ficava uma sujeira tremenda, muitos faziam isso no meio da rua, quer dizer ...
DOC. - . Que mais que você se lembra desse período da guerra, assim que afetou a vida, que fazia a vida ser diferente?
INF. - . Ah, interessante, coisas ... as sirenes que tocavam quando faziam simulações de bombardeio, apagavam-se as luzes todas, a cidade ficava às escuras quando aquelas sirenes, que eram colocadas em pontos estratégicos da cidade, tocavam. E o rádio, o repórter o famoso repórter ESSO, né, que foi criado na época e só dava notícias de guerra. E foi até interessante, eu me recordo o meu irmão, quando eu era muito garoto, eu me recordo quando o meu irmão se virou pra mm assim: "Olha..." Eu perguntei: "E agora acaba também o repórter ESSO?" Aí, ele me disse: "Não, vai ficar dando notícia de cinema, notícia de futebol, notícia ...
Eu não imaginava, porque eu nasci praticamente quando a guerra começou, que foi em trinta e sete, e passei a, eu fui criado, eu ouvi as primeiras coisas dentro da guerra e no rádio era só guerra; os jornais, só guerra; as revistas que o papai comprava e levava , você desfolhava, eram só fotos horríveis de guerra. Então, pra mm era guerra. Nas ruas, os estudantes e sempre os estudantes faziam campanhas de arrecadação de matéria-prima pra ser reaproveitada. Essa matéria-prima era ferro, carvão, alumínio, metal de um modo geral, né, e borrachas, pneus...E eles faziam umas pirâmides, chamava-se, chamava-se pirâmides, aí iam empilhando ali para depois serem recolhidas pelas caminhões para levarem aquilo dali para as usinas de reaproveitamento, tudo isso. Então, isso tudo eu via, eu vivia isso. Aí, eu não podia imaginar que o mundo pudesse viver sem aquilo. A guerra, no meu entender, era o motivo do mundo. Ficava difícil você imaginar que tudo aquilo ia acabar de repente e nós íamos entrar no melhor dos mundos: o rádio só ia falar de futebol, o rádio ia falar de cinema. Eu não entendi aquilo, entendeu?
DOC. - . (risos) Engraçado, né? E no dia a dia, assim, havia dentro de casa, tinha alguma modificação por causa disso?
INF. - . Não, só a dificuldade de se obter certas coisas. Havia o dinheiro, mas era difícil você comprar o pão, era difícil você comprar o leite, era difícil comprar carne. O pão tinha que ser o pão de milho, o trigo era escasso. Nós sempre importamos o trigo, ainda hoje o Brasil importa o trigo, e, na época, a importação das coisas ficava um pouco mais difícil. Primeiro, por causa da economia de guerra em que o mundo estava vivendo os países produtores produziam muito menos. Segundo, até pela própria dificuldade de se transportar as coisas. É quando começou a haver o torpedeamento de navios, é, atravessando os oceanos. É, inclusive aqui, nas costas do Brasil mesmo, uma vez fomos torpedeados. Aí, as coisas não chegavam com a facilidade que chegariam em outras épocas, né? Havia o racionamento do trigo, o racionamento dos produtos dos derivados do leite era pequena no Brasil, era insuficiente. Então, importava-se e também a importação não chegava. E era esse dia a dia é que eu sentia, porque o restante eu era criança, era brincadeira, era, entendeu? Também vivia na época do regime de Getúlio Vargas e o regime de Getúlio Vargas sempre foi um regime também, por ser uma ditadura, sempre foi também muito perigoso, né? E influenciava também demais a criança. Hoje, interessante, hoje, eu tenho a impressão que, não sei como anda o ensino no colégio público, mas tenho a impressão que hoje não se fica incutindo na cabeça da criança o tempo todo cidadania, ufanismo da pátria, nada disso, né?
DOC. - . Não, eu acho que quando eu estava no colégio, eu ainda peguei um pouco, né? Nos anos setenta ...
INF. - . Nos anos setenta, né?
DOC. - . É...
INF. - . Mas, é que nos anos setenta você já pegou, já foi uma ditadura diferente...
DOC. - . É, foi diferente, mas a gente tinha, tinha bastante no colégio isso.
INF. - . Exato, é, já foi uma ditadura diferente. Na época do Getúlio Vargas, nós tínhamos um outro tipo de ditadura, inclusive foi na época, como foi época de guerra, foi época do nazismo, foi época do Mussolini, era quando estávamos vivendo um tipo de ditadura na Itália e o Getúlio se baseava muito , muito mesmo no Mussolini, né? Então, nós tínhamos uma cartilha, eu acho que já comentei isso contigo, uma cartilha no colégio público, que eu não alcancei, eu nunca estudei em colégio público, mas eu via que existia.
DOC. - . Ah, não?
INF. - . Não, eu via que existia no colégio público uma cartilha em que você abria e começava assim: "Eu amo o meu país, o meu presidente era o Dr. Getúlio Dornelles..." A criança já aprendia em cima, já começava a soletrar em cima de uma lavagem cerebral, toda voltada pro ufanismo pra adoração do presidente da república, daí que tenha se criado essa geração getulista e que só agora as cabeças começam a se modificar, entendeu? E por isso que nós tivemos durante muito tempo aquela, aquele queremismo, aquele negócio PTB, entendeu? Da época Vargas, né ... e sem falar que todo lugar você tinha que ter um retrato do presidente da república, durante a guerra você tinha que ter um "v" da vitória, eram coisas que ...

Doc. "v" da vitória?
INF. - . É, aquelas fitinhas verde-amarela junto à foto dele em tudo que era canto, tudo isso já fazia parte de uma educação voltada pra manutenção do regime, entendeu? Então, os estudantes e sempre os estudantes sofria essa lavagem cerebral vivia intensamente a coisa, né? Agora, eu na época fazia o que? Primeiro ano primeiro ano primário, segundo, sei lá, nem me recordo...
DOC. - . Era bem garoto, né?
INF. - . Era bem garoto, bem garoto, mas a minha participação era exatamente essa, o que eu entendia era tudo oriundo de um tempo de guerra mesmo, né?
DOC. - . E depois que a guerra acabou, isso mudou, como é que, que que você sentiu?
INF. - . Não, quando a guerra acabou, mas um pouquinho adiante também houve a, deixa eu ver, trinta e sete, quarenta e cinco, aí houve também o final da ditadura do Getúlio Vargas, mas nós continuamos com um militar no poder, que foi o que o sucedeu. Aliás, o Getúlio Vargas não era militar, mas ele colocou, ele fez de presidente imediato um, alguém que tinha sido inclusive ministro da guerra dele que foi o Gal. Dutra. As coisas foram se modificando, né, a mentalidade, foi aí que eu comecei já, já foi se apagando aquela imagem da guerra, também porque eu fui desenvolvendo, eu fui entrando numa idade em que aquilo vai esquecendo, mas continua brincando de revólver, de avião, mas é, que mais ...
DOC. - . Não, era isso que eu queria saber, porque você disse que aí tinha, teve o período de racionamento, né? Que vocês ...que tudo foi se modificando...
INF. - . Não, foi se modificando, mas nós tivemos, nós voltamos a ter no final. É aquilo, né, sempre se ouviu falar que a geração atual tinha que se sacrificar em prol da geração futura, né? Eu acho que desde que eu nasci, eu já estou vendo, acho que estou vendo a terceira geração, já está chegando a quarta geração e continua se sacrificando em prol da geração futura, né? Nós só viemos a ver o fim da escassez disso, escassez, ora escassez de um produto, ora escassez de outro produto agora, há pouco tempo, depois que terminou o fim do segundo período, da segunda ditadura que houve e terminado o governo do Sarney. Foi aí que nós começamos a ver a fartura de tudo, mas aí o fruto da abertura de mercado e que agora já se diz que essa abertura foi perniciosa. A gente nunca sabe o que está certo.
DOC. - . Como é que era antes da abertura de mercado?
INF. - . Antes da abertura de mercado, é, nós tínhamos, havia o problema da entressafra do boi, a carne subia. Havia o período da entressafra do leite, o leite sumia. Havia uma queda na safra do feijão, o feijão sumia; o arroz, a mesma coisa, tudo isso. E, resultado, muitos enriqueceram, fruto dessa época, porque não há como um racionamento pra meia dúzia ganhar dinheiro. Então ... agora nós não vivemos isso, agora talvez nós comecemos a viver a escassez de outra coisa, a escassez do emprego, a escassez do dinheiro, talvez, porque sem o emprego, não há dinheiro. Sem o dinheiro, não adianta ver, não adianta encontrar todos os produtos na prateleira, porque não tem como comprar, não tem o principal que é o dinheiro, não tem o veículo, né?
DOC. - . É, outro dia a gente estava conversando da evolução dos aparelhos, né, eletrônicos, eletrodomésticos, né?
INF. - . É, sonhava-se ...
DOC. - . Que é que você tinha em casa, que que você via em casa, quando você era criança, quando você era adolescente, que é que tinha assim?
INF. - . Ouvia muito rádio e ia muito cinema, muito cinema cinema, cinema normalmente cinema. Morava em Bonsucesso e Bonsucesso tinha um cinema, como em todo bairro havia um cinema. Em alguns lugares às vezes mais de um cinema, né? E o cinema, a programação sempre, tinha uma programação que ia de segunda a quarta e uma outra que ia de segunda a domingo. Então, nós íamos sempre às quartas e quintas-feiras ao cinema. Então, a principal diversão era o cinema e o rádio. Ouvia-se muito rádio. No rádio, havia programas de levar um dia inteiro. Conforme hoje a gente vê aí um Sílvio Santos na televisão, existia o programa César de Alencar, existia o programa Manoel Barcelos, existia, que levavam uma tarde inteira apresentando um monte de atrações, atrações, atrações ... E as atrações eram esquetes de comédia ou então música, muita música, cantores, cantoras: Marlene, Francisco Alves, Emilinha Borba e por aí afora, né? E o cinema, o cinema, os filmes eram quase todos eles americanos. Houve uma época que tivemos uma influência muito grande dos filmes italianos e alguns dramalhões mexicanos, mas o que prevalecia mesmo eram os filmes americanos, muitos filmes americanos. Então, foi essa época, aí era o rádio, o rádio, era o rádio ...
DOC. - . Vocês tinham som em casa?
INF. - . Não, nós não tínhamos. Nós não tínhamos vitrola. Na época, era vitrola.
DOC. - . Nessa época era comum ter vitrola, ou era coisa que poucos tinham?
INF. - . Olha, eu só via...Olha, dos poucos amigos que eu, dos conhecidos que eu tinha, eu não me recordo de vitrola, não. Não sei se eu não estava ligado nisso, mas não tinha vitrola, não. Na época, os discos inclusive eram discos de setenta e oito rotações, né? Eram discos que só cabiam duas músicas de cada lado, né? Mas, nós não tínhamos vitrola, não, só rádio.
DOC. - . Que que tinha mais em casa assim de aparelhagem elétrica que ajudasse no dia a dia de vocês?
INF. - . Olha, que eu me recorde ...
DOC. - . Porque, hoje, a gente é muito dependente disso, né? A gente tem muita coisa, né? Eu tenho a impressão de que era bem diferente ...
INF. - . É, que eu me recorde o outro aparelho elétrico que tinha era o chuveiro.
DOC. - . (risos)
INF. - . Agora, interessante, eu me lembro quando eu era muito garoto, muito garoto mesmo, muito, quando eu era, sei lá, talvez tivesse ... dois anos, dois anos, eu me recordo ...
DOC. - . Você se lembra?
INF. - . Eu lembro quando o papai, ele ganhava um bom dinheiro no posto de gasolina, foi antes, ainda não havia o racionamento de combustível, ainda se ganhava dinheiro com mais facilidade no posto de gasolina e os efeitos da guerra ainda não haviam atingido tanto o comércio. Então, toda hora tinha alguém oferecendo alguma coisa diferente ao meu pai. E eu me recordo quando se colocou lá em casa, foi a primeira máquina de lavar que eu vi, foi a primeira geladeira que eu vi. É, a geladeira tinha uma bola em cima, não sei porque, eu tenho a impressão que a serpentina, ou o motor, ou o compressor era em cima, era esquisito mesmo. E eu com a máquina de lavar, foi quando eu vi pela primeira vez uma máquina de lavar, que foi colocada lá em casa pra teste.
DOC. - . Quando foi mais ou menos?
INF. - . Ah, deve ter sido lá por mil e novecentos e ... mil novecentos e quarenta, mil novecentos e quarenta e um, por aí, alguma coisa assim. Mil novecentos e quarenta, talvez, sei lá. Então, foi quando eu vi uma máquina de lavar, me lembro quando os demonstradores foram lá, levaram a máquina, colocaram isso, colocaram uma luz, ela era elétrica. E ela funcionou batendo a roupa, sei lá, eu não lembro bem como ela funcionava. Só uma coisa eu me lembro que me chamou atenção, ela não centrifugava, a forma de secar era por cilindros eu acho que comentei isso contigo, não?
DOC. - . Não.
INF. - . Não? Eram cilindros, e exatamente como o cilindro de fazer massa de pastel, aqueles negócios, né? E você enfiava a roupa, tirava da coisa, passava no cilindro. Aí, evidente, quando você ia do outro lado, não tinha um botão inteiro, não tinha nada, né? Entendeu? E, o pior, a possibilidade de acidente era enorme, da mão ir junto, né? Naqueles cilindros de borracha. E papai não ficou com a máquina, viu que a praticidade dela , ainda na época, era muito remota, não existia, não havia nenhuma praticidade naquilo, ela estava surgindo. Eu acho que se a gente procurar em antiquários aí, a gente talvez ainda encontre máquinas. Elas eram ... seus tambores, elas eram redondas, eram brancas já, já eram brancas, eu achoque na época não existia essas pinturas especiais, mas já se pintava bem , tanto que existiam os automóveis. Os automóveis tinham pintura. Era pintura de automóvel, e redonda, tinha rodinha, era enorme, aquilo era muito grande pro benefício que prestava, né? Mas, aí não ficaram com a máquina de lavar. Não me recordo, porque houve uma modificação muito grande, se ... com a morte da minha mãe , houve uma modificação muito grande na nossa vida e uma modificação muito grande na vida do meu pai também, né? Entendeu? Porque ele ficou um período viúvo até casar de novo. Aí, quando casou outra vez, já houve ... Na realidade, chegou a haver assim uma descoordenação total da vida. É evidente isso, é evidente, você tem uma vida: o marido e a esposa, já tem três filhos, aquilo ali já está traçado. Tem casa própria e tudo; tem lá atividade dele que é o posto de gasolina na Penha. De repente, há o falecimento da mãe, aí fica, acaba descoordenando tudo e foi o que aconteceu. E houve uma modificação brutal na vida de meu pai e a modificação foi muito grande. Aí, logo depois, veio o período de guerra também, tudo isso foi dificultando cada vez mais, né? Mas, é, eu me lembro dos carros, papai sempre tinha um carro do ano, o último carro que ele teve era do ano, era uma Primolt, era uma limousine Primolt do ano e que foi proibida de rodar por causa da guerra, porque não rodava carro particular. Aí, a Primolt ficou numa garagem, no posto de gasolina, um ano, um ano e meio, dois anos, até que ele praticamente deu a Primolt para um amigo dele que tinha sido padrinho de casamento, do primeiro casamento dele ou do segundo casamento, e por quê? Porque esse outro era um motorista de táxi. Então, ele passou a ter um carro do ano. Entrou uma placa vermelha no carro , uma placa vermelha...Hoje, ainda, são placas vermelhas nos táxis, eu acho que usam placa vermelha, é placa vermelha. Essa placa gelo é a placa particular. É, o carro se transformou, deixou de ser carro particular pra ser carro de praça, e aí voltou a rodar e este foi o último carro do ano que papai teve. Mas, nós tínhamos sempre carro do ano, um FORD 29, um FORD ... e vai por aí afora, né? Sempre FORD 29, não, na época, não era carro do ano, evidente, mas eram sempre carros importados e carros do ano que o papai tinha. Falei FORD 29, falei besteira, mas eram todos carros do ano, mas é ...
DOC. - . (risos) Vida de informante é assim, vai falando, vai falando, a gente vai perguntando.
INF. - . Já está gravando?
DOC. - . Não tem problema, não. Mas você falou que não podia rodar carro particular?
INF. - . É, não, carro particular só rodava durante a guerra se fosse com esse combustível próprio, que eu estou te falando, o gasogênio. Não rodava carro particular, entendeu? Só rodava carro particular, umas peruas, na época existiam peruas que faziam lotação ... Existiam alguns ônibus, umas linhas de ônibus e existia o bonde, que era o grande transporte da população e existia o trem. O trem, a população se transportava de trem, o trem não era a coisa degradante que é hoje não, entendeu? O trem era um transporte mesmo, transporte que transportava as pessoas normalmente. Hoje, não...
DOC. - . Como o ônibus hoje.
INF. - . É, como o ônibus hoje, né? Então, a população também era muito menor na época, né? E os anseios da população também eram muito menores, né? A vida no subúrbio, a vida no bairro, existia mais a vida no bairro, o pessoal se fechava mais no bairro, não tinha aquele negócio. O sujeito ia à cidade, quando ia à cidade era um acontecimento, era pra fazer compras. As mulheres quando iam à cidade com as crianças eram pra fazer compras de uniforme, comprar os livros, comprar os uniformes do colégio, porque aí eram sempre, infalivelmente eram na cidade. Nas épocas natalinas, ia se comprar também as coisas, que era tudo um inferno pra comprar. Eram filas, porque tudo chegava em pequena quantidade. Então, você entrava em filas enormes pra poder comprar por preços razoáveis e mercadoria razoável. Então, tudo assim. Só, em acontecimentos carnaval aí ia se ia se pro centro da cidade, né, pra ver as grandes sociedades, pra ver.... Na época, a escola de samba era coisa de gente muito simples e não tinha nenhum destaque, não tinha nada. E estava começando, não eram nem ... eu não sei nem se tinham os nomes de escola de samba ou se tinha alguma conotação, a conotação de escola de samba que tem hoje. Podia ser quer houvesse alguma coisa com o nome de escola de samba, mas sem a conotação de hoje, né? O que havia mesmo, e que movimentava todo mundo pro centro da cidade no carnaval, eram as grandes sociedades, que desfilavam pela Avenida Rio Branco, às terças-feiras de carnaval à noite. Era o encerramento do carnaval, aí era um inferno pra voltar pra casa de ônibus.
DOC. - . E vocês iam ver?
INF. - . Quase sempre.
DOC. - . Ia a família toda?
INF. - . Ia a família toda fantasiada.
DOC. - . (risos)
INF. - . Era um inferno.
DOC. - . Ah, conta!
INF. - . Era um inferno, era um inferno.
DOC. - . Vocês se fantasiavam, tudo? Idéia de quem isso?
INF. - . Da minha madrasta.
DOC. - . Ela gostava?
INF. - . Eu não sei se gostava. Eu acho que ela via mais como uma obrigação, porque se ela foi, se ela teve um segundo casamento com o objetivo de cuidar de três crianças do primeiro casamento, ela tinha que fazer a coisa com perfeição. E, na época, a regra mandava: as crianças têm que se fantasiar, as criança têm que ver as grandes sociedades, as crianças têm que ir pro colégio, as crianças têm que fazer a primeira comunhão, a gente ... entendeu? Então, ela cumpria à risca tudo isso, era a sociedade da época, né? Era o que a sociedade dizia que tinha que ser feito, entendeu? Uma das coisas era essa aí: se fantasiar no carnaval. Então, todos nós tínhamos a fantasia, que ela mesmo fazia, entendeu? Ela mesmo que fazia as fantasias, né? Todos nós tínhamos que sair no carnaval pra todo mundo ver a fantasia da gente, né? Então, saía, pegávamos um ônibus, íamos pra cidade. Na época, papai não tinha mais carro, íamos de ônibus pra cidade. Era uma fila pra ir e uma fila infernal pra voltar. Quase sempre chovia, temporal, e era um problema, comum ainda, né? Já na época tudo enchia, enchia o centro da cidade, enchia Bonsucesso, enchia tudo também. Os problemas são sempre ... os problemas da época são os problemas de hoje, a mesma coisa. Se cair um temporal, também o ônibus não vinha, enchia tudo, o ônibus não passava, a gente ficava todo molhado sentado no meio-fio, esperando horas por alguma coisa pra poder sair de lá. Então, as dificuldades da época são as dificuldades de hoje, dentro das devidas proporções, né? Só que hoje são ... eu acho que o Rio de Janeiro, o município do Rio de Janeiro são oito milhões de habitantes, oito, sei lá, oito, nove milhões...Na época talvez tivéssemos um milhão e meio, dois milhões de habitantes, no máximo três milhões então. Mas também a proporção era a mesma, as vias urbanas eram muito mais estreitas, eram em quantidades muito menor, os meios de transportes eram muito mais simples, né? E em uma quantidade muito menor. Então, a proporção é a mesma.
DOC. - . E vocês viviam assim, o deslocamento que faziam na cidade era no máximo ir ao centro da cidade e o resto do tempo passava no bairro, se fosse diversão era no bairro ...
INF. - . Quase sempre, quase sempre era assim. Tinha aquelas clássicas visitas da família, as famílias se visitavam muito, a família de visitava muito ...
DOC. - . Nos fins de semana ...
INF. - . Mas era o bairro, era praticamente o bairro, praticamente o bairro. Porque o bairro tinha, o bairro tinha o comércio necessário, o bairro ... Principalmente morando em Bonsucesso, né? Bonsucesso, ali a Praça das Nações sempre foi um centro comercial, né? Entendeu?
DOC. - . Vocês moravam ali perto?
INF. - . Morávamos bem perto da Praça das Nações. Então, ali era um centro comercial, que por sinal melhor do que hoje. Na época, o centro comercial de Bonsucesso , ele era mais... Bonsucesso "involuiu", entendeu? "Involuiu". Então, era um centro comercial muito mais amplo do que hoje. Mas, basicamente, nossa vida era bairro, era bairro. Era bairro. Qualquer coisa que saia é surpresa. Aliás, é aquele negócio é exatamente hoje como a mocidade que vive na Barra da Tijuca, os adolescentes da Barra da Tijuca, que pra eles é uma surpresa, eles nem têm bem noção da existência do centro da cidade, eles nem têm noção disso. É Méier, Bonsucesso, pra eles é ... No outro dia, vi um programa na televisão eu acho que foi, não sei, foi um programa da Globo aí, a Globo pegou três, parece que quatro ou cinco adolescentes. Você viu? E levou-os pro centro da cidade, eles saíram desfilando ali, olhando o Largo da Carioca, aí que eles viram o que é camelô, viram lá um cara que fica fazendo uma pregação o tempo todo, né? Olhou, começaram a olhar para cima e ver que existem os edifícios, edifícios grandes. Então, você vê, as coisas se repetem, as coisas se repetem, né? Na época, realmente a nossa vida era ali o bairro, Bonsucesso. A escola era próxima. Depois, na adolescência, a escola foi um pouquinho mais distante, mas continua sendo no subúrbio da Leopoldina.
DOC. - . E nunca em escola pública, foi sempre escola particular que você estudou?
INF. - . Eu sempre, eu e meus irmãos sempre estudamos em escolas particulares, sempre. Então, foi da ... a escola pública era um pouco difícil na época ...
DOC. - . Por que? Era difícil?
INF. - . É, você ... pro nível secundário, você encontrava ...Apesar de que hoje é a mesma coisa, nível secundário, você só encontra o que é o Colégio Pedro II, que é o mesmo da época, né? O Colégio Cloves Monteiro, não sei se hoje o Cloves Monteiro ainda é nível secundário, mas na época era nível secundário; o Instituto de Educação, né? Mas era, só mulher que estudava na Escola Carmela Dutra e aqui no Instituto de Educação hoje também tem homem também estudando, né? Mas não havia, né? Que eu me recorde, não havia mais, o colégio militar era outra alternativa, não havia mais nada de ... E hoje me parece que continua a mesma coisa, né?
DOC. - . Tem mais colégios públicos de ...
INF. - . De nível secundário?
DOC. - . É.
INF. - . Porque a maioria era só nível primário, entendeu? E depois também, o ensino particular não era tão caro quanto é hoje e também a situação do meu pai permitia que ele se desse ao luxo, na época. Então, eu sempre estudei em colégio particular, né? E, na realidade, nunca houve nenhuma tentativa da minha parte, nem dos meus pais que tentarem fazer com que eu prestasse algum concurso, pra algum colégio público. Aquilo dali já foi rotina mesmo, então foi, foi do primeiro ano primário até o último ano do curso científico quando eu já estava inclusive, é ... Aliás, o penúltimo ano do curso científico que eu fiz, fazendo exército ...não, não foi até o último ano do curso científico, sendo que no último ano foi que eu estudei à noite porque eu estava servindo ao Exército. Então, durante todo este período, o meu estudo foi custeado pelo meu pai, eu só vim a custear o meu estudo na Universidade, na faculdade.
DOC. - . E estudava aonde? O colégio do segundo grau que você fez qual é?
INF. - . Segundo grau foi no Colégio Cardeal Leme. Eu fiz o primeiro grau que seria o primário foi feito no Instituto Rui Barborsa, em Bonsucesso o curso ginasial, que equivaleria hoje já ao ginasial mesmo, né? Foi feito no Colégio Santa Tereza, em Olaria...
DOC. - . Onde eu cheguei a estudar um ano.
INF. - . Chegou a estudar no Santa Tereza?
DOC. - . É, Lembra? Eu estudava num colégio que entrou em obra, aí eles transferiram a gente durante um ano pra esse colégio, que você falou que tinha estudado lá.
INF. - . Ah, sim, Colégio Santa Tereza, na rua Leopoldina Rego. É um colégio enorme ...
DOC. - . É um colégio enorme, agradável à beça.
INF. - . E depois, o curso científico, eu fiz no Colégio Cardeal Leme. Então, foram três colégios, e a faculdade eu fiz na Associação Fluminense de Educação, em Duque de Caxias, né? Então, foram os meus quatro colégios. Ainda tive uma aventurazinha quando saí do curso ginasial pro curso científico, que aí eu queria entrar na Escola Preparatória de Cadetes da Aeronáutica, era o sonho de todo garoto na época, né? Todo adolescente na época sonhava com aviação ...
DOC. - . É?
INF. - . É, pilotar avião, não sei que, e tal. Então, eu cheguei a fazer, eu me preparei durante um ano, num curso até aqui perto na rua São Francisco Xavier, que já acabou o curso. Um curso especializado só em escolas, em preparar candidatos pra, para os colégios, pra Escola Preparatória de Cadetes da Aeronáutica, pra Escola Preparatória de Cadetes da Polícia Militar, pro Colégio Militar, né? Pro Colégio Naval ... A especialidade dele era só essa, Curso Tuiti, mas na hora eu fui fazer o exame, fui fazer a prova e não fui bem-sucedido. Eu perdi um ano, eu perdi um estudo, mas, na realidade, ganhei, ganhei experiência...Aquela bobagem que a gente sempre fala quando perde, a gente diz assim: eu ganhei ...
DOC. - . (risos)
INF. - . Na realidade, eu perdi, perdi foi o meu tempo, entendeu? Perdi o meu tempo, mas também não, isso não significou nada ....
DOC. - . Mas tinha vocação assim pra isso?
INF. - . Não, pra militar eu não tinha vocação. Eu tinha vocação...Não era nem vocação, era um desejo, tanto que aconteceu até um fato curioso, a escola... o concurso já foi feito dentro da escola, dentro da Escola da Aeronáutica, da Escola Preparatória de Cadetes da Aeronáutica, era dentro da Escola da Aeronáutica e era no Campo Dos Afonsos, aqui no Rio de Janeiro. Depois, eles tiraram isso daqui e colocaram lá em Pirassununga , parece. Levaram pra Barbacena, Pirassunnunga, lá pra aquelas áreas, depois que houve um acidente com dois aviões aqui em cima, que eu vi inclusive um deles caindo. Eu vi os dois caindo, era um avião de instrução da Escola de Cadetes da Aeronáutica, que chocou-se com um avião grande que vinha de São Paulo e tudo. Aí, eles removeram, porque era realmente impraticável ficar fazendo treinamento de piloto no mesmo céu, onde tinha o aeroporto, dois aeroportos e o tráfego já estava mais intenso. Mas, então, eu fui fazer o exame lá, eu e a turma, no dia do exame ...eu já vi uma coisa que me desagradou profundamente. Não quero dizer com isso que, não estou justificando o fato de não ter passado ou tentando me auto convencer que foi melhor assim, não é isso, entendeu? Mas alguma coisa que realmente me deixou ver que não ia dar certo. A arrogância dos que já estavam lá, a arrogância dos cadetes. Então, nós chegamos pra fazer a prova e tudo, não é? Dentro de um ambiente militar. Aí, no intervalo de uma prova, a gente foi, no intervalo lá do exame, a gente foi pra uma cantina, cantina dos cadetes pra tomar refrigerante, pra tomar um café, bater um papo. Nisso, chegam alguns cadetes, daqueles bem afinal, eu estava na casa deles, né? Bem arrogantes, né? E começam a, a brincar de uma maneira bem arrogante com alguns candidatos, né? Bom, até que pegou um esquentado e o negócio acabou, o colega que estava lá fazendo a prova acabou tomando uns tapas e teve que ficar com os tapas. E ainda alguns candidatos tentaram se meter e o negócio ia acabar se tornando agressão feia e a parte mais fraca eram os visitantes que eram os candidatos e ficou por ali. Você sabe que aquilo dali marcou, pra mim marcou, marcou e realmente não ia dar certo. Na época, inclusive os trotes eram muito violentos, ainda hoje os trotes ...
DOC. - . São.
INF. - . É, são, principalmente na área militar, né? Muita coisa nem vem à tona, porque são militares. Então, a coisa fica abafada ali, porque se o cara pretende seguir carreira, ele não reclama, porque se ele reclamar, a carreira dele está encerrada ali. Então, eu cheguei a conclusão que se eu tivesse passado, sei lá, talvez eu tivesse jogado a toalha. Não era, realmente, não era. Era aquele negócio, era o sonho por um lado, mas o bom era o pilotar, o bom era o avião, mas a vida militar talvez não fosse a coisa boa não.
DOC. - . E aí, você decidiu fazer o que depois?
INF. - . Não, depois eu voltei ao meu curso científico, foi quando eu saí, terminado o ano, eu me matriculei de novo no colégio, lá no Colégio Cardeal Leme, né? E recomecei o meu curso científico e lá já estava em plena adolescência. Aí já começa namoros, já começa outra coisa, aí já é outra coisa, né? Já começa uma vida diferente, foi quando eu inclusive criei um jornalzinho. Era um jornalzinho todo manuscrito. Aí depois de manuscrito, ele passou a ser todo feito no mimeógrafo. O colégio me franqueava o mimeógrafo pra rodar os estênceis, né? Aí todo mundo ... eu vendia esse jornalzinho, eu e mais dois ou três colegas, a gente vendia pra custear o jornalzinho, não é? Fazia anúncio da cantina, fazia esses negócios assim, né? Aí foi uma vida diferente. Depois veio o Exército, veio servir o Exército, veio ... Aí o meu irmão conseguiu que eu não servisse na tropa, que eu servisse no Ministério da Guerra, eu não fiquei na tropa, mas também se ficasse na tropa era indiferente, entendeu? Mas aí eu fiquei dois ou três meses na tropa e depois fui pra um contigente do Ministério da Guerra. Tudo isso já foi começando a moldar a minha vida profissional, porque no Ministério da Guerra, eu passei a ser um burocrata, entendeu? Aí, já foi moldando o que eu seria realmente na frente, né? Tudo começou ali, começou já no curso científico, foi quando eu comecei a despertar pra vida, foi quando o Brasil também começou a sofrer enormes transformações, quando houve o suicídio de Getúlio Vargas. É quando nós começamos a ver uma modificação grande na política brasileira, uma modificação grande também na sociedade brasileira, né? Aí, depois do Exército, veio o primeiro emprego que foi numa empresa que está até hoje aí, uma grande empresa, a Companhia Antártica Paulista. Aí foi quando eu comecei a minha vida mesmo, a olhara a vida pelo lado de ganhar dinheiro. Até então eu não sabia o que era ganhar dinheiro e não sabia o que era gastar dinheiro.
DOC. - . Mas aí quando você foi pra lá, você não foi mais assim pensando em vocação ...em alguma coisa que você tivesse vontade de fazer, se foi por que ...
INF. - . Aonde, na Antártica?
DOC. - . É, porque ...
INF. - . Não, eu sempre ....o meu sonho, na realidade, era ser advogado. Então, eu comecei ...quando eu saí, eu não estava acostumado a estudar e trabalhar, tem esse detalhe também, né? Como eu não estava acostumado a estudar e trabalhar, eu comecei a sentir dificuldade, porque aí eu comecei, assim que eu entrei na Antártica, eu não queria parar de estudar. Eu me matriculei ... Na época, eu queria fazer Direito. Existiam poucas faculdades de Direito, faculdade privada mesmo, eu não me recordo, mas talvez existisse, existissem umas duas, duas ou três. Então, eu tinha que tentar mesmo era o ensino público. Era um funil, o vestibular era um funil infernal. Na época, não existia múltipla escolha ainda e nem vestibular unificado, não existia a CESGRANRIO, nada disso. Cada faculdade fazia o seu vestibular e era tudo prova descritiva, o tempo todo prova descritiva, né? Então, eu comecei a me prepara pra fazer o vestibular de Direito, me matriculei num cursinho. Na época, era o Curso, hoje é até faculdade, né? O Hélio Alonso, que você também estudou lá, né? Se preparou lá pra fazer o seu vestibular, não é isso?
DOC. - . Foi.
INF. - . Só que na época, o curso Hélio Alonso era um curso que estava, até porque os cursinhos vestibulares, eles estavam começando também, era tudo início de tudo, não é? Então, não existia, hoje, que aliás também já está passando da época, né? Os cursinhos vestibulares foram se transformando em colégios ...
DOC. - . Foram mudando
INF. - . As coisas estão mudando, não é? Hoje o que era um cursinho vestibular tipo GPI, hoje é Colégio GPI, o que era cursinho pré-vestibular tipo Hélio Alonso, hoje é Colégio Hélio Alonso, é Faculdade Hélio Alonso, não é isso? Mas, na época, foi, era, foi ... os primórdios dos cursinhos. Então, eu me matriculei no Cursinho Hélio Alonso que ocupava umas três ou quatro salas na rua México, defronte a Embaixada Americana, né? E eu acho que até hoje ele está lá, a sede
DOC. - . Tem, no Centro.
INF. - . A sede administrativa só, parece, alguma coisa assim.
DOC. - . Quando eu estava fazendo Hélio Alonso, um dia teve aula lá, num daqueles alões assim, antes da prova, né? E foi lá realmente.
INF. - . Pois é. Então, eu comecei ... aí eu fui fazer, só que havia uma preocupação dos cursinhos com há ainda hoje, deles aprovarem o máximo possível de candidatos. Então, o que que acontecia? Ao longo do ano, eles mesmos iam procurando desestimular aqueles que eles viam que não iam ter condições de aprovar, de ser aprovado, eles iam desestimulando. E como eles desestimulavam! Eles passavam um monte de exercícios pra você fazer em casa, era um monte de exercícios, você tinha um monte de tarefas...e na época, tinha latim, tinha prova de latim, a prova de história era "puxadérrima", tanto que o próprio Hélio Alonso é que dava aula de História, dava aula de Latim, aula de Português, era o próprio professor Hélio Alonso. Aí, eu acabei também e era aquele negócio: eu não estava acostumado a ganhar dinheiro e a gastar dinheiro, de repente eu comecei ganhar dinheiro e a aprender gastar dinheiro. Ora, pra quem tinha levado uma vida inteira, até os dezoito, dezenove anos sem saber gastar dinheiro, porque não tinha como, papai não dava mesada, não tinha nada disso.
DOC. - . É?
INF. - . Não, não tinha nada disso, né? Então, o que acontecia, quando eu comecei a aprender gastar dinheiro, comecei a aproveitar a vida gastando dinheiro...Ora, aí com as horas extras eu ganhava mais dinheiro, eu coloquei em segundo plano o estudo e acabei abandonado realmente o curso pré-vestibular e o sonho do Direito foi-se por água abaixo. Passado um ano ou dois anos, eu não tenho bem situado isso, mas eu comecei a ver, começou a despontar uma profissão nova e aí eu estava enfronhado no meio de trabalho já, comecei a ter uma visão diferente, a visão de economia, de administrador, a visão de economista, de contabilista. Então foi quando surgiu, foi quando começaram a surgir as faculdades de Economia, quando começou a surgir o economista. Bom, aí eu meus olhos ficaram voltados pra ser economista. Então, eu comecei de novo um outro vestibular, né? Já voltado pra faculdade de Economia, já foi em outro curso, porque o Hélio Alonso era especializado em Direito.
DOC. - . Era só Direito?
INF. - . Era Direito, não sei se Letras também. Mas era basicamente Direito, entendeu? Bom, aí eu fui pra um curso especializado só em Economia, o curso AS, em cima do BOB’s , lá no Castelo, ali onde tem a Marechal Câmara, não sei se você sabe, na Presidente Wilson, né? Era em cima do BOB’s. Aí, lá ia eu todo dia, lá ia eu lá pro curso AS. Quem dava aula era o próprio dono do curso também, dava aula de Matemática. Só que eu aí mudei radicalmente. Na realidade, eu nunca gostei tanto de Matemática. Eu gostava mesmo de Português, eu adoro Português, você sabe disso, né? Adoro Português, adoro Redação, adoro estudo, né? Então, eu já estava me violentando, mas o que vai se fazer, não é? Aí, eu fui fazer o curso pro (ininteligível), fui lá fazer o preparatório pra Economia, mas também tinha aquele detalhe, só interessava ao curso e esse era muito menor do que o Hélio Alonso, eu acho até que esse não sobreviveu ao longo do tempo, desapareceu, também eu não sei, eu também não acompanhei, não sei se ele se transformou em alguma coisa. Aí depois ...
DOC. - . Qual é o nome?
INF. - . Curso AS. E começou também a mesma coisa, aquela mesma ...Ao longo do ano, começou também o arrocho, aquilo, porque só interessava apresentar candidatos que tivessem condição de passar, que é aquele famoso percentual: você apresentou cem, passaram noventa, que é, a fama do curso vai nisso. Então, não adiantava você ter duzentos alunos, apresentar duzentos alunos e passar noventa. No ano seguinte, você não ia ter os duzentos, nem os cem, que o teu percentual de aprovação era baixíssimo, né? aí, veio o desestímulo também e eu aprendia cada vez mais a gastar dinheiro e gostava cada vez mais de ganhar dinheiro e acabei abandonando, não é? Acabei abandonando e aí só vim a pensar mesmo de novo em ter um diploma ... Apesar de que tem um detalhe, minha filha, ao longo de todo esse período, curso superior era um privilégio de poucos. quando eu fui trabalhar no meu primeiro emprego, na Antártica, dentro do escritório, você contava nos dedos quem tinha pelo menos o curso científico. O curso ginasial já era excelente, já era um nível cultural excelente pra época. Quando eu entrei em banco, que eu saí da Antártica e entrei em banco, você contava nos dedos os empregados que tinham além do primário e até porque não tinham tempo de fazer outra coisa. O sujeito quase que dormia dentro do banco! Ele entrava sete e meia, oito horas da manhã e só conseguia sair depois de achar aquele monte de diferença e tudo, oito horas da noite. Ele ia estudar como? Tinha entrado jovem, era uma época que havia a estabilidade do emprego. Então, o sujeito entrava e ficava até a morte no emprego. Passado dez anos, ele era estável, só podia ser demitido por justa causa. Então, era comum, o sujeito entrava pra fazer carreira, né? Então, quando eu entrei em banco, pouquíssimos eram os colegas que tinham pelo menos o curso científico, né? E a coisa foi passando e eu fui subindo dentro do banco, atingindo postos de chefia. Até que quando cheguei a uma gerência, eu cheguei a conclusão que ... Aí, já começou o próprio mercado de trabalho já começou a olhar o curso superior. Você tinha que ter alguma coisa além do curso científico. Então, foi que eu voltei, mas então já era uma carreira que estava começando e que coincidia bastante com a minha atividade, que era administração. E, aí, eu fui fazer Administração de Empresas, quer era uma carreira nova, tanto que ainda se chamava o administrador de empresas de técnico em administração. E conseguiram tirar esse técnico em administração, que dava a impressão de um curso técnico e não um curso superior. E hoje criou-se, conseguiu-se mudar técnico em administração para administrador. Então, era uma coisa nova, que estava começando, e hoje, na realidade, é uma das carreiras que mais se faz e uma das carreiras mais utilizadas realmente, porque é um ensino embasado e todo administrador, normalmente quando ele é engenheiro, médico e tal, ele faz uma faculdade de administração também que é pra embasar.